quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Banguê: Três Entradas e Um Labirinto Perverso*

É comum, na nossa história literária, ouvirmos falar dos romances de José Lins do Rego como a narração do Ciclo da Cana de Açúcar. Aliás, foi o próprio autor quem assim os considerou, imbuído, naquele momento, da saga de sua família de senhores de engenho. Anos mais tarde, José Lins quis apagar o rótulo, provavelmente porque este título geral desse ênfase a um contexto não literário, mas próximo de uma autobiografia. A verdade, porém, é que a idéia do Ciclo nasce espontaneamente após terminada a leitura de seus cinco romances pioneiros.
A propósito, Balzac, por exemplo, nomeou A comédia humana como um vasto painel de sua extensa produção romanesca. Mas, mesmo que a iniciativa não tivesse partido do Autor, é bastante provável que os críticos-leitores franceses tivessem a idéia de assim denominar sua obra, mediante a recorrência temática. Balzac desvendou, literariamente, o funcionamento de uma aristocracia decadente e as sinuosas relações com a burguesia vitoriosa, no século XIX francês.
Não se trata aqui de uma comparação entre dois autores, mas de uma reflexão sobre o projeto literário de José Lins do Rego. Mesmo porque o autor paraibano não arquitetou a priori um plano para os seus cinco romances iniciais. Graciliano Ramos, num artigo intitulado “Decadência do Romance Brasileiro”, resumiu, a respeito da Obra da Cana-de-Açúcar, a maioria das opiniões críticas sobre essas narrativas, naquela ocasião. [1]

“José Lins do Rego fez o Ciclo da Cana-de-Açúcar, conjunto de cinco romances sérios: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Bangüê (1934), Moleque Ricardo (1935) e Usina (1936). Não podemos isolar nenhum desses: movem-se aí as mesmas personagens, apresentam-se os mesmos interesses, as mesmas lutas. O romancista não ideou um plano. Escreveu uma novela de cento e tantas páginas, julgo-a incompleta e resolveu acrescentar-lhe um segundo volume. Sempre insatisfeito, foi adiante – e assim veio a lume a narração do bangüê vencido pela usina, do capital estrangeiro absorvendo as economias do senhor de engenho..”

A reflexão que ora se inicia detém-se na narrativa de Bangüê. [2] Em primeira mão, por ele representar o último romance em que o narrador adota o foco narrativo enquanto personagem que narra, ou seja: o Carlinhos adulto. A segunda motivação coincide com a narração do declínio final de seu avô José Paulino e do engenho Santa Rosa.
A escolha do narrador de primeira pessoa está estreitamente ligada ao fato de o autor transformar em ficção sua vivência e convivência nos latifúndios da família. Até certo ponto, este recurso literário, tão bem explorado por grandes autores (haja vista São Bernardo e Brás Cubas ) induz o conceito de narrativa memorialística, que vem contemplando os inúmeros comentários da critica sobre esses romances iniciais. Mas, vista por outro ângulo – sem o cunho memorialístico que subjaz à sua ficção – a importância do narrador de primeira pessoa em José Lins deve-se a certa compulsividade do autor, ou insatisfação como queria Graciliano Ramos.
Esta atitude gera uma funcionalidade literária, ou seja: gera o processo reiterativo de seus romances. Gera redundâncias de situações e de recorrências estilísticas, que são expostas de vários ângulos, mas que o leitor vai percebendo como reiterações. Este processo reiterativo pode ser visto como uma metalinguagem do conteúdo. À medida que o narrador vai reiterando a decadência da família e a exploração dos cabras do eito, a forma naturaliza o contexto da experiência vivenciada. Naturalizada, ela esvazia ou torna neutra a exploração, e assim reatualiza o mito da sociedade dos patriarcas, na pessoa do senhor de engenho, briguento, poderoso, mas paternal. A metalinguagem assume, neste caso, a função do mito que é a de esvaziar o conteúdo da mensagem, segundo a acepção de Roland Barthes. [3]
Portanto, mais do que um ciclo, a imagem que proponho para uma das possíveis leituras de Bangüê é a do labirinto. No ciclo, presumidamente, existe um processo evolutivo com princípio e fim. De uma maneira geral, a imagem do ciclo da cana-de-açúcar, ou do esplendor e decadência da vida patriarcal, fica retida na configuração dos cinco romances, somados posteriormente a Fogo morto, que é o réquiem do Ciclo. Mas é nos labirintos da estrutura de Bangüê que quero me fixar agora.
A imagem da edificação do labirinto se configura como um traçado confuso, fácil de entrar e difícil de sair. O mito do labirinto de Creta, com a ameaça do Minotauro a devorar os que nele se aventurassem, condiz com a metáfora de um caminho complicado, cheio de armadilhas. [4] Em Bangüê há três entradas para o labirinto-enredo; três capítulos denominados respectivamente de: “O velho José Paulino”, “Maria Alice” e “Bangüê”. Essas entradas se trifurcam em caminhos, ou encaixes narrativos, intimamente correlacionados. Tomados em conjunto, são percursos de um mesmo traçado confuso que sugere avanços e recuos no andamento da narrativa e na voz do narrador.
Definindo uma conduta mais sistemática, tentemos delimitar os volteios labirínticos de Carlos de Melo, o narrador protagonista. Em um primeiro plano, sobressai a tentativa de saída individual e/ou existencial do sujeito do discurso. Num segundo plano, evidencia-se o impasse da sobrevivência econômica dos latifúndios da família do patriarca José Paulino que é, por contigüidade, o impasse da grande família patriarcal nordestina. No entanto, mesmo assim delimitados os dois planos significam uma unidade formal. A subjetividade dos impasses de Carlos de Melo tem a contrapartida na objetiva situação do declínio econômico do latifúndio açucareiro.
A primeira entrada no labirinto da estrutura de Bangüê, cujo subtítulo é “O velho José Paulino”, coloca o narrador diante da evidente derrocada de sua classe social. Ele está de volta do Recife, após dez anos de ausência:

“Vinte e quatro anos, homem, senhor do meu destino, formado em Direito, sem saber fazer nada. Nada tinha aprendido, nenhum entusiasmo trazia dos anos de aprendizagem. Agora tudo estava terminado. Um simples ato de fim de ano, e a vida devia tomar outro rumo.” (Bangüê, p. 5).

Curioso este enunciado: “Homem, senhor do meu destino”. Que destino? É natural que indaguemos agora qual o objetivo de alguém que é senhor do seu destino, mas que dos anos de Faculdade sai sem saber fazer nada. A resposta vem logo adiante:

“De fora, eu me voltava para o Santa Rosa. Queria continuar minha gente, ser um senhor rural. Era bonito, era grande a sucessão do meu avô. Fazia cálculos, sentia orgulho em empunhar o cacete de patriarca do velho JoséPaulino. Seria um continuador”. (Bangüê, p. 5, grifos meus.)

Vemos aí o primeiro desafio que o narrador encontra na entrada do labirinto. Sua experiência intelectual é de fachada e ele mesmo se declara uma nulidade. Como herdeiro natural do latifúndio familiar, Carlos de Melo se deve, porém, a tarefa de continuar a grandeza dos antepassados:

“A tradição dessa vida me enchia de orgulho de ter saído dessa gente. Ia longe nos meus sonhos, pensava em montar no humilde Santa Rosa o luxo dos meus antepassados.” (Bangüê, p. 6)

Por todo o capítulo, o narrador ora avança nos sonhos de grandeza e resgate da tradição patriarcal, ora recua no marasmo de sua impotência. As duas posições são exaustivamente reiteradas, tal como o caminhante do labirinto que ora se anima pela iminência de uma saída, ora se frustra na perda do rumo:

“Encolhido na minha rede, deixava que o tempo corresse. Tomavam-me como um doente. Só podia ser doença daquele recolhimento de dias inteiros”. (Bangüê, p. 11)

A degradação que assola o Santa Rosa, com o declínio físico do patriarca José Paulino é a mesma que constrange o narrador. Preso no labirinto, sem forças para avançar, ele se compraz em destruir moscas:

“Botava papel com breu para aprisioná-las. Ficava atento às manobras que fazia pra morrer. Era a única coisa que me seduzia ali: aquele espetáculo miserável, ver o suicídio das moscas.” (Bangüê, p. 18)

Se invertermos a imagem, poderemos ver no “suicídio” das moscas seu próprio suicídio moral; ainda mais que o sacrifício dos insetos era patrocinado pelo arbítrio do narrador, contemplando os volteios que elas faziam para escapar daquele “destino”. Perdido no labirinto, Carlos de Melo se comprazia em espetáculo de degradante inércia.
Analisando de outro ângulo narrativo, este estado degradante neutraliza-se pela freqüente autocomiseração com que o narrador alimenta a sua imagem. Esta atitude complacente troca de sinal quando ele ajuíza, negativamente, a degradação em que vivem seus antigos companheiros de infância, “os moleques da bagaceira”:

“Um dia chamei um deles para conversar. Tinha casa, três filhos, morava em Areia e vinha para o eito. Falava comigo desconfiado. De cabeça baixa. Como tinha se degradado, ele que fora meu chefe nas brincadeiras de Antônio Silvino.” (Bangüê, p. 11)

O que tinha sido uma brincadeira de igual para igual no terreiro da casa-grande, o faz de conta que a infância proporcionara, torna-se agora uma contingência de subordinação frente ao “sinhozinho”, entendida e respeitada pelo cabra do eito. O narrador “naturalmente” esquece que a supremacia do outro na infância, era apenas um ato teatral de igualdade. No momento atual do discurso narrativo, a “degradação” decorre das objetivas condições de uma conjuntura social aviltante, esmaecida pela ambigüidade da enunciação.
A segunda parte do livro – o capítulo dedicado a Maria Alice – aparentemente narra as frustrações amorosas do narrador e (aparentemente também) se fosse suprimido não implicaria maior solução de continuidade ao enredo, caso tomássemos como referência apenas a temática da ruína dos engenhos. No entanto, é nesse capítulo que afloram as maiores contradições do narrador até então expressas em mornas digressões. A personagem feminina – tal qual uma nova Ariadne – dá-lhe um fio condutor e age como um catalisador no impasse existencial de Carlos de Melo. Agudiza o conflito de sua impotência e o lança em direção a uma saída. Até então o narrador estava dividido entre o prestígio intelectual (se tornar um cronista da grandeza dos senhores de engenho) e o desejo de assumir, de fato, o mando latifundiário.
Maria Alice traz dois dados referencialmente perturbadores nesta fase do nosso protagonista: é mulher e é estranha ao meio rural. Na vivência dos engenhos, o desempenho feminino fora sempre o de coadjuvante no mando. Suas atribuições maiores circulavam entre a cozinha e a sala de visita. Seus subordinados eram as negras do serviço doméstico. Do alpendre da casa-grande, a senhora de engenho – com raras exceções – exercitava limitadamente o domínio de ver, ouvir e opinar. Maria Alice, por seu lado, é uma figura culturalmente citadina. Filha de um oficial do exército, nascida na Paraíba e morando por algum tempo no Rio de Janeiro. [5] Com a morte do pai e o casamento com um funcionário público, primo em grau afastado da família de José Paulino, ela volta a residir na Paraíba. Privada da vida cultural que usufruía na capital do país, ela entra em depressão. Os médicos recomendam uma temporada no campo que a curaria do “ataque de nervos”. Estes são os dados referenciais que motivam a presença de Maria Alice no Santa Rosa. Paralela a eles, inicia-se a trama do “sedutor e da seduzida”, ocasionando a saída de Carlos de elo da letargia anterior.
As primeiras observações de Maria Alice, a respeito da ida dos cabras do eito, acontecem quando ela ainda parece não se dar conta do interesse erótico que desperta em Carlos. Andando com o “Doutor” pelas casas dos moradores, observa as condições subumanas em que vivem: ” Faz pena. Aquele só falta engatinhar na lama.”. (Bangüê, p. 46) É apenas um palpite, mas o suficiente para deixar o narrador ressabiado: “E eu fiquei pensando se aquela piedade não fora uma censura a nós, que éramos donos da feitoria”. (Bangüê, p. 46) Do palpite a critica direta, Maria Alice vai confrontando as contradições entre a casa–grande e o bangüê. Os trabalhadores do eito ganhavam mil e duzentos para “doze horas de enxada”. Maria Alice sai-se com um discurso de subversão à ordem vigente na esfera patriarcal: “– Que coisa horrível! Um homem da cidade para carregar uma mala ganha muito mais do que esses em doze horas. Não se conformava. Por isso havia revolução no mundo”. (Bangüê, pp. 52/53)
Na verdade, a crítica de Maria Alice não vai além da outra ponta do capitalismo que já estava em prática nas prestações de serviço, ou seja, explorar um pouco menos para “apaziguar” a classe desfavorecida e “evitar revoluções”. Mas na lógica dos herdeiros do patrimônio rural essas palavras soam como subversivas, a ponto de o narrador, páginas adiante perguntar-lhe se era comunista.
Podendo ver, ouvir e opinar sem limitações, Maria Alice assume uma ascendência sobre o herdeiro rural. Dá-lhe a deixa para retomar o projeto da crônica dos engenhos, mas sob mudança de perspectiva: “Por que o Doutor não escreve um livro sobre essa gente? Em vez de exaltar a vida dos donos, o doutor podia se interessar pelos pequenos." (Bangüê, p. 53)
Esse momento da narrativa é importante para a definição do projeto literário de José Lins do Rego: a voz questionadora da personagem feminina se configura como um desdobramento do projeto narrativo. É seu alter ego à procura do rumo. Define o discurso ambíguo do narrador na trajetória estrutural de seus romances, alentado pela forma paternalista. Ao mesmo tempo em que denuncia a exploração dos “homens livres” no latifúndio, o narrador tenta, incessantemente, resgatar o poder da sociedade patriarcal, justificando sua existência: “Achei uma boa idéia [...] Seria um gesto grandioso, porque viria de um que herdaria mais tarde estas terras e estes homens”. Na verdade, enquanto descendente do patriarcado rural ele é coerente com esta visão de mundo: herda terra e homens. Mas enquanto arquiteto da narrativa deixa filtrar a vida subumana dos trabalhadores braçais, daí sua ambigüidade.
Durante os meses de sua relação íntima com Maria Alice, o narrador como que recebe uma carga energética que o faz assumir as tarefas de mando que o avô, bastante combalido, pouco a pouco abandonara. A moça da cidade também se adapta ao campo, desempenhando com sucesso o papel de senhora rural. Este é o momento em que o narrador parece acertar sua engrenagem existencial com a do engenho, tomando gosto pelo mando:

“O hábito do trabalho dava-me gosto pela chefia, o amor ao cabo do relho. Vivia de cama e mesa com Maria Alice há quase dois meses, tirando a safra do Santa Rosa, a dar gritos para os tombadores de cana, para o mestre de açúcar. E até briguei com um moleque que chupava cana caiana no picadeiro. Entrava pela casa de purgar, pela casa do bagaço, de olhos arregalados para tudo”. (Bangüê, p. 65, grifos meus.)

É o momento, também, em que a saída para o fim do labirinto seria a do narrador-protagonista assumir, de vez por todas, sua condição de senhor de engenho. Mas tal opção retiraria, por certo, a complexidade de sua obra, onde está implícita a corrosão da tradicional família açucareira.
Optando pelo recurso irregular do labirinto, acentua-se a ambigüidade no trato entre o mandante e os mandados, movida pela visão paternalista do senhor. Seus cabras ganhavam pouco e eram explorados, mas contavam com uma certa alforria por parte do senhor de engenho, além dos acréscimos que a natureza pródiga da várzea lhes dava. Neste momento vem à tona o principal obstáculo, o real perigo que ameaça o percurso labiríntico do narrador e, por contigüidade, o da sociedade patriarcal: a presença da usina no cenário econômico dos grandes latifúndios de estrutura familiar.
A alusão à usina – que se torna agora um dos móveis centrais da narrativa – é feita à maneira de uma oposição entre o menos ruim e o pior. As usinas pagavam três mil réis aos seus trabalhadores – portanto mais do dobro que o engenho. – porém não lhes concedia o direito de botar seu roçado, criar seu bacorinho, sua cabeça de gado, etc. A questão do assalariado se coloca, no nível de enunciação do discurso narrativo, apenas entre o “relho do pai” e a autoridade impessoal da sociedade anônima das usinas; ou ainda entre o “pai-patrão” e o “patrão-empresário”. Este é um dos motivos que apazigua a consciência do narrador. Outra argumentação ainda, é sobre a “vadiagem” dos cabras do eito que não os deixava “subir” na vida. A indolência que ele imputa aos trabalhadores chega a ser perversa na aparente ingenuidade do tecido textual.

“Davam três dias de serviço, ao menos. Era a obrigação. O resto da semana, que trabalhassem para ele. Poucos trabalhavam. Mandavam as mulheres para o roçado, de pano na cabeça, e ficavam em casa se refazendo do eito pesado. Muitos iam dar conversa pelas bodegas da estrada, beber cachaça, gozando a vida a seu jeito (...) Tinham filhos que perdiam com a mesma indiferença com que viam morrer um pinto de sua ninhada. Se o ano fosse bom de algodão, faziam mais roupa e bebiam mais nas festas para se estragarem no caipira. Não sabiam o que era um mealheiro, um tostão guardado de reserva.”

Ao argumento, que minimiza a exploração, soma-se a providencial cumplicidade da natureza: as terras da várzea e o rio Paraíba servindo de celeiro natural para os pobres. Esta prodigalidade rende também uma outra oposição dentro dos próprios latifúndios: os pobres da várzea eram mais “felizes” do que os do agreste, cujas terras não eram tão férteis ao plantio da cultura que lhes subsidiava a já precária alimentação.
Recapitulando o discurso narrativo, vimos que a entrada na segunda parte de Bangüê configura uma mudança em Carlos de Melo na direção a uma provável saída do labirinto-enredo. Maria Alice – o ponto de vista citadino – impulsiona a retomada da tradição patriarcal, dentro de uma perspectiva mais humana, se assim pudermos chamar as observações superficiais da personagem feminina, que de cama e mesa, se assume como “senhora de engenho”.
Mas o projeto do herdeiro se frustra com a partida de Maria Alice, que entra nas primeiras páginas do capítulo e sai nas últimas, já “curada” dos faniquitos e de braço com o marido, tão descomprometida como chegara. Sua funcionalidade estrutural estava cumprida. Exacerbara os mecanismos de consciência do narrador, acentuando-lhes a ambigüidade de seus avanços e recuos.
A partir do terceiro capítulo, as oscilações de Carlos de Melo atingem o ponto mais alto do termômetro narrativo. Com a morte do avô, ele se torna o senhor do engenho Santa Rosa. Começa de fato o desafio que no capítulo inicial preocupava-o apenas como possibilidade: ou seja, a transferência fetichizada do símbolo patriarcal (o cacete de José Paulino) com todas as implicações econômicas e sociais dele advindas.

“Tinha ganho o Santa Rosa. Era meu, livre de tudo. Todo aquele mundo de terra me pertencia de porteira fechada. Gado muito para o serviço, mais de cem bois de carro, burrama grande, safra no campo para colher e um povo bom para mandar nele. Era senhor de engenho. Muitos levavam uma vida para chegar àquela situação e conquistar o direito de mandar em terras e gente. [...] Mas o Santa Rosa estava íntegro, mantido em seus limites. Seria para ele (o avô) a maior desgraça se um dia fosse obrigado a perder uma braça de terra. Fizera-lhe a vontade. A sua nave capitânea não sofrera avaria de espécie alguma”. (Bangüê, p. 109)

O avanço da narrativa vai comprovar um dado importante na ficção de Bangüê: os planos ambiciosos do narrador acontecem apenas no extrato do imaginário do poder, no qual, àquela altura, se sustenta a família patriarcal. [6] A conservação da integridade do Santa Rosa é o lado prático - e ainda exeqüível – em que se faz a representação nostálgica da memória do patriarcado açucareiro. No âmbito do desempenho administrativo de Carlos de Melo, chega a ser patética a transição entre o último discurso que finaliza o item cinco, expresso no texto acima, e o que vem em seguida, iniciando o item seis. É um dos poucos momentos em que a narrativa – rompendo seu ritmo reiterativo – consegue um dos pontos mais dramáticos, pelo impacto abrupto de situações adversas. Realmente um gran finale.

“Há três anos que o Santa Rosa safreja com seu novo dono. E estava de fogo morto. O que fizera para isto? Não sabia explicar meu fracasso.” (Bangüê, p. 109)

O andamento posterior da narrativa se encarrega de demonstrar como, pouco a pouco, a perda de limites do Santa Rosa coincide com a desintegração individual do narrador. Ele caminha em direção ao ponto determinante da estrutura do ciclo, que é a presença da usina vencendo o bangüê, ou do capital estrangeiro absorvendo as economias dos senhores de engenho, como disse Graciliano Ramos. Isto é representado na ficção pela impotência de Carlos de Melo; embora configurada no plano individual revela-se a metonímia, ou imagem síntese da desagregação econômica do patriarcado açucareiro nordestino, na década de vinte. Sendo assim, tanto a limitação do herdeiro como a perda de limites do latifúndio, constituem um dado estrutural da narrativa, e coerente e inseparável.
Dito isto, poderia parecer que a capitulação do bangüê seguiria uma linha evolutiva marcada por um determinismo de fim de linha. Ao contrário, a complexidade reside não no resultado final para onde vai sendo empurrado o narrador, mas nas entrelinhas da estratégia usada pelo capital estrangeiro para abalar os alicerces dos vários engenhos, até torná-los de fogo morto. Assim começam os confrontos de Carlos de Melo com a Usina São Felix, através do diretor-gerente da sociedade anônima.
É claro que a sociedade anônima não se permite os arcaicos confrontos de cabras e rifles que existiam entre os senhores de engenho, quando estavam em pé de guerra. Os métodos são mais sutis, como por exemplo, intermediar um antigo cabra do eito para atazanar a vida do herdeiro. José Marreira, morador de José Paulino, é o modelo dos poucos “servos” que dão certo. No conchavo estratégico com a usina, Marreira vai alugando as terras do engenho para o plantio de cana, de parceria com Carlos de Melo. Aos poucos, de benfeitoria em benfeitoria, vai adquirindo direitos nas terras do Santa Rosa. Quando Carlos dá por si, Marreira já era uma espécie de co-proprietário. Ao exigir-lhe que saísse de suas terras, ouve em resposta um justo período de indenização.
Acentua-se a ambigüidade do representante patriarcal nas referências preconceituosas feitas ao antigo morador, definindo a situação de ambas as classes sociais:

“Marreira se despediu de mim com o mesmo sorriso. Ia pensar, e dando resposta no outro dia. Vi-o montado um belo cavalo ruço, de arreios reluzentes. E ainda tirou-me o chapéu com reverência. Que superioridade danada! Aonde aquele moleque aprendera aquilo, aquelas maneiras de grande? Pegara no cabo da enxada como trabalhador alugado, subira por cima de cargas de aguardente, contrabandeando cachaça de Pernambuco, passou para lavrador, levando anos no Santa Rosa, moendo cana. Hoje, Capitão José Marreira, fazendo frente ao neto do homem que o mandara para o eito”. (Bangüê, 134)

A ação que Marreira intermedeia entre o arquejo do Santa Rosa e o fôlego da São Félix é decisiva. Matreiramente, ele deixa a briga entre os “brancos" ao vender seus plantios para a usina, não sem antes dar o troco para o preconceito:

“Não estou pedindo exorbitância. Avaliei tudo por baixo. Prefiro o prejuízo, a brigar com o neto do Coronel José Paulino. Deus me livre disto. Branco que brigue com branco. Camub´be cum camub´be.” (Bangüê, p.133)

Enredando-se cada vez mais no complexo labirinto, Carlos se endivida com a usina que via chegar o momento da posse do Santa Rosa. Mas se o engenho estava quase de fogo morto, a sociedade patriarcal ainda dispunha de algum fôlego para a saída do impasse. Diante da ameaça do capital empresarial, a família, com o filho Juca à frente, empreende a compra do Santa Rosa, com o intuito de conquistar seu espaço na comunidade dos usineiros. Carlos de Melo, aparentemente, encontrara a ambicionada saída, resolvendo seus impasses: nem o marasmo inicial, nem a veleidade de empunhar o cajado do avô. Sai do engenho, tecendo-lhe um réquiem entre o queixoso e o aliviado, mas sem dúvida também poético pela provável perda dos paus-d´arco, suprema ironia.

“Era um homem rico. O bolso cheio de contos de reis. Dei o engenho ao Tio Juca por trezentos contos. [...] O Santa Rosa findara. É verdade que com um enterro de luxo, com um caixão de defunto de trezentos contos de réis. Amanhã uma chaminé de usina dominaria as cajazeiras. Os paus-d´arco não dariam mais flores porque precisavam de terra para a cana. E os cabras do eito acordariam com o apito grosso da usina. E a terra fria iria saber o que era trabalhar para a usina. E os moleques o que era fome. Eu sairia de bolso cheio, mas eles ficavam.” (Bangüê, p.182)

Estamos chegando ao fim do labirinto proposto para a leitura de Bangüê. No início, chamei a atenção para o aspecto coincidente das provações do narrador e dos impasses da sociedade patriarcal delineados na estrutura do romance. O labirinto perverso do discurso narrativo – usado como imagem em substituição ao ciclo – continua em Usina[7], desta vez com a corrosão do Dr. Juca. O narrador de primeira pessoa sai de cena e delega a voz ao narrador de terceira, que continua a crônica familiar. A mudança de estratégia do foco narrativo visa criar um distanciamento do relato memorialístico, um salto sem dúvida qualitativo para o autor.
O artifício, no entanto não elimina as idas e vindas da sociedade patriarcal nem a voz suprema de Menino de engenho. O que Carlos de Melo narrou em seu primeiro romance e continua reiterando compulsivamente até Fogo morto é a ambigüidade ideológica da estrutura pós-colonial brasileira, confrontada entre os privilégios de classe a serem mantidos e as idéias modernas que nos chegavam como modelo de prestígio liberal [8] Maria Alice é um exemplo desse liberalismo de encomenda e José Marreira – tomando o caminho da modernização rural – torna-se o veículo da nova mentalidade que atropela a classe dos senhores de engenho. Nesse sentido, ele também antecede a Paulo Honório, cujo drama individual e social preenche as páginas de São Bernardo.

NOTAS:

*Escrito para a Semana Literário sobre José Lins do Rego. João Pessoa, 1990
[1] RAMOS, Graciliano. Decadência do romance brasileiro. Literatura. Rio de Janeiro, ano I, no 1, set. 1946.
[2] REGO, José Lins do. Bangüê. 13 ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1982. Todas as citações do romance obedecem, a partir de agora, a esta edição.
[3] BARTHES, Roland. O mito hoje. In: Mitologias. 7 ed., São Paulo: Difel, 1987.
[4] Flora Sussekind, em Tal Brasil qual romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984, usa a imagem do labirinto em oposição ao círculo. Este trabalho, por outro lado, tenta refletir o labirinto dentro do ciclo.
[5] É possível que, na enunciação, o narrador se refira à capital do Estado como Paraíba. O tempo da narrativa está, presumivelmente, entre os anos da década de vinte – auge da crise da açucarocracia , conforme denominação de Evaldo Cabral de Melo . Em 1930, com o assassinato do Presidente da Paraíba, a capital passa a se chamar João Pessoa.
[6] A propósito da transferência das perdas da família dos senhores de engenho para o imaginário do poder hegemônico da cultura nordestina frente às demais culturas brasileiras, vê o meu livro: A tradição re(des)coberta: Gilberto Freyre e a literatura regionalista. Editora da UNICAMP, 1992. No famoso Manifesto regionalista, dito de 26, mas publicado em 1952, pelas Edições Região, Gilberto Freyre afirma: “Talvez não haja região que exceda o Nordeste em riqueza de tradições ilustres e em nitidez de caráter. Vários dos seus valores regionais tornaram-se nacionais depois de impostos aos outros brasileiros menos pela superioridade econômica que o açúcar deu ao Nordeste durante mais de um século do que pela sedução moral e pela fascinação estética dos mesmos valores.” (grifo meu) E a respeito da perda econômica dos senhores de engenho, ele diz no mesmo Manifesto: “Já quase não há casa, neste decadente Nordeste de usineiros e novos-ricos, onde aos dias de jejum se sucedam, como antigamente, vastas ceias, de peixe de coco, de fritada de guaiamum, de pitu ou de camarão, de cascos de caranguejo e empadas de siri preparadas com pimenta. Já quase não há casa em que dia de aniversário na família os doces e bolos sejam feitos em casa pelas sinhás e pelas negras: cada doce mais gostoso que o outro”.
[7] O moleque Ricardo antecede a Usina e sua ação se passa no Recife. Pelo fato de a narração se prender ao espaço urbano, alguns críticos, equivocadamente, o colocam à margem da temática dos engenhos. A esse respeito ver o excelente trabalho de Manuel Cavalcante Proença: O negro tinha caráter como o diabo. In: REGO, José Lins do. O moleque Ricardo. 14 ed., Rio de Janeiro, José Olympio?João Pessoa, Secretaria de Educação e Cultura da Paraíba, 1978.
[8] A respeito das contradições ideológicas da sociedade brasileira, colonial e pós-colonial, cito o clássico trabalho de Roberto Schwarz: As idéias fora do lugar. In:Ao vencedor as batatas –forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo:Duas Cidades, 1977. E mais recentemente, Um mestre na periferia do capitalismo/Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

O Contexto Social Como Um Problema de Forma Literária

Um dos problemas que mais afligiram a nossa literatura foi justamente o de enfrentar a filiação aos modelos estrangeiros, sem com isso cair na cópia do original, ou na teoria da dependência de país colonizado. Tal problema constituiu-se, positivamente, ao longo de nossa história literária, inquietando tanto os nossos escritores como os críticos da produção ficcional brasileira. Essa hesitação entre o ser e o não ser estabeleceu-se, principalmente, desde os meados do século XIX, permanecendo até hoje sob diferentes indagações, embora já bastante atenuadas devido às experiências dos textos modernistas e pós-modernistas.
É sabido que desde o Romantismo – a fase considerada da “maioridade” de nossa literatura – a busca da identidade nacional e a afirmação da nacionalidade freqüentaram tanto as produções literárias como a crítica especializada da época. Hoje, qualquer estudante do curso de Letras sabe que José de Alencar, Gonçalves dias ou Castro Alves, entre outro dos nossos românticos, se empenharam em dotar suas obras dessa feição nacionalizante e dessa afirmação de país novo, fixando as cores tropicais como originalidade da incipiente nação. Essa busca da identidade nacional contribuiu, com excessos, para a noção de um ufanismo, ora ingênuo ora desbragado, que tanto marcou e – convenhamos – ainda marca a mentalidade do país. Em 1908, o Conde Afonso Celso – mineiro de boa cepa – escreveu o livro Porque me ufano do meu país, com muito sucesso entre a elite letrada e a intelectualidade brasileira. Nele está um bom exemplo de um ufanismo ingênuo e bastante tendencioso das mazelas de nossa colonização. Um rápido olhar no seu índice composto de 42 itens nos dá a medida desse desmedido orgulho. [1] Sobre a escravidão, o Conde Afonso Celso argumenta em favor da positividade do tratamento que se dava ao escravo e de como sua libertação foi feita de maneira “honrosa”:

Se é exato que o Brasil se demorou a abolir a escravidão, não menos certo que em parte alguma a questão foi solvida de modo mais inteligente e honroso.
Não nos deve envergonhar o fato de havermos mantido a maldita instituição. Quase todos os povos o (sic) praticaram.[2]

Na segunda metade do século XIX, a crítica literária, ainda tateante, foi marcadamente de feição nacionalista, na tentativa de dotar o país de sua identidade nacional pós independência.Tanto Sílvio Romero como Araripe Júnior e José Veríssimo laboraram na crítica da literatura e da cultura. O primeiro deles antipatizava com a ficção de Machado de Assis por achá-la impregnada da influência dos romances ingleses. A certa altura de sua História da literatura brasileira ele diz:

"O estilo de Machado de Assis não se distingue elo colorido, pela força imaginativa da representação sensível, pela variedade do vocabulário. [...] O nosso romancista não tem grande fantasia representativa, Em seus livros de prosa, como nos versos, [...] falta completamente a paisagem, falham as descrições, as cenas da natureza, tão abundantes em Alencar e as da história da vida humana, tão notáveis em Herculano e em Eça de Queiroz. [...] O estilo de Machado de Assis é a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivace, nem rútilo, nem grandioso, nem eloqüente. É plácido e igual. Uniforme e compassado. Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente, do vocabulário e da frase. Vê-se que ele tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da linguagem [...} Machado de Assis repisa, repete, torce e retorce tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que deixa-nos a impressão de um tal ou qual tartamudear."[3]

Por aí se vê que a crítica de Sílvio Romero a respeito do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas, se detém em dois aspectos da ficção machadiana – segundo ele, negativos. Justamente dois aspectos que elevaram o romancista à categoria de um dos maiores ficcionistas da nossa literatura, ou seja: a superação da cor local ( ou a idéia estritamente nacionalizante) e o trabalho interno da forma, irônica, implícita e perspicaz, flagrando as contradições da burguesia fluminense, revelado no comportamento de suas relações. Justamente são esses aspectos que Sílvio Romero compara à limitada linguagem do tartamudo, ou gago.
Outro exemplo interessante de explicação para o ufanismo no nosso comportamento cultural nos vem de Araripe Júnior. Segundo ele, no primeiro século de nossa colonização, o colonizador se vê tomado, ou melhor, vampirizado pela influência da terra tropical, produzindo no descendente europeu uma regressão, ou um “desbaratamento estético e moral” nas camadas civilizadas dos portugueses, ao atravessarem o Atlântico e fixarem seu habitat na América do Sul. A esse efeito, o crítico chama de obnubilação brasílica: [4]

"Qual foi o sentimento que se gerou no português logo que se sentiu abandonado às suas próprias forças no solo americano? Qual a nova direção que tomaram suas faculdades estéticas em conseqüência dessa queda psíquica, ou para exprimir-me melhor – dessa regressão ao tipo mental inferior, por desagregação da placenta européia? Nessas condições o colono e o aventureiro, quando mais se afastavam da costa e dos pequenos núcleos de segurança, mais se animalizavam, descendo à escala do progresso psicológico." (ARARIPE – Gregório de Matos, pp. 310 a 312, op. cit.)

É clara a influência do meio segundo as teorias deterministas e evolucionistas da época (meio e raça propagadas por Darwin e Spencer) na elaboração de Araripe Júnior. Aliás, a filosofia disseminada por Tobias Barreto, na Escola do Recife, impregnava toda essa geração de intelectuais. Curiosamente, ao mesmo tempo que ele vê uma positividade na “obnubilação” do português, rendendo-se à terra brasileira incivilizada, credita este efeito ao “tipo mental inferior”. A originalidade da crítica de Araripe Júnior fica por conta de uma certa inversão de valores. A crítica brasileira da época, por estar imbuída dessas teorias, realçava o aspecto de dominação européia sobre os primitivos habitantes da terra e esmiuçava os textos dos primeiros viajantes em que era visível o discurso de estranhamento e de preconceito (com raras exceções) pelos meios e costumes dos autóctones e o crédito ao tom de superioridade cultural dos autores. Araripe opera uma inversão quando maximiza a influência da terra sobre o comportamento secular, civilizado e cultural, do português, a ponto de este se ver tomado por uma “animalização”:

"Nessas condições o colono e o aventureiro, quanto mais se afastavam da costa e dos pequenos núcleos de segurança, mais se animalizavam, descendo à escala do progresso psicológico." (ARARIPE, Gregório de Matos, p. 311, grifos meus)

Bem contados os argumentos, o crítico aproximava-se, na verdade, da teoria do atavismo, mas como uma inversão no mínimo original para a época. Os antropólogos da linha ariana empregavam o conceito de atavismo para as raças ditas “inferiores”. Sendo assim, um núcleo populacional que permanecesse longe da influência civilizatória, quando posto em contato com essa mesma influência, entraria em conflito e regrediria de uma relativa pacificidade aos instintos mais bárbaros de seus ancestrais. Euclides da Cunha, embora com vista de longo alcance, em não poucos momentos de Os sertões, analise por esse prisma o comportamento dos sertanejos e as vicissitudes de Canudos.
Em Araripe Júnior é a própria raça “superior” que se vê degradada, animalizada em contato com a terra tropical e seus habitantes. Do ponto de vista cultural, envolvendo a estética e a religiosidade européias, a metáfora do “obnubilamento”, contida no sol dos trópicos, também produz uma cegueira regressiva:

"É assim que no próprio Anchieta vemos o misticismo diluir-se em um curioso naturalismo e a sua teologia transformar-se genialmente em fetichismo para realizar a obra de catequese dos índios." (ARARIPE, Gregório de Matos, p. 311)

Dessa maneira, o teatro de Anchieta que, via de regra, é visto como uma obra de inteligente interculturação entre os padrões estéticos, religiosos e morais da civilização ocidental e a cultura “bárbara” dos primitivos habitantes (levando-se em conta a manipulação ideológica da ação colonizadora) é analisado por Araripe como uma caída para o naturalismo fetichista, uma mística “genialmente” diluída pelo fetiche. O outro lado – a barbárie – é contemplada com o elogio implícito à natureza ímpar que vence a civilização. Sendo vencida, a parte civilizada – apesar de degradada – torna-se paradoxalmente engrandecida pela natureza dionisíaca e soberana, da qual é vítima.. É assim que se entende o fetichismo genial de Anchieta. O discurso de Araripe não é, pois, simplesmente unívoco, e sim dialeticamente ambíguo.
Pode-se dizer que a metáfora do obnubilamento concorreu e coincidiu com outros discursos, ficcionais e não ficionais, como um dos pontos de partida para o entendimento das teses do ufanismo, do nacionalismo, da antropofagia oswaldiana e de todo o movimento tropicalista que influiu na história da cultura e da literatura brasileira, com seus pontos altos e suas aterrissagens forçadas, com sua ideologia e sua contra-ideologia. 5 Por trás de quase quatro séculos do início da colonização, as mudanças ocorridas no organismo social dos países desenvolvidos – e que se refletem majoritariamente no campo sócio-econômico do nosso país – são quase sempre postas em confronto (vantajoso para nós) com o esplendor do sol e a riqueza da terra.
Falei no início da dificuldade de enfrentarmos nossa filiação à cultura européia e de como isso gerou e gera ainda um constrangimento até hoje apreensível nos nossos meios culturais e acadêmicos. Se estou debatendo o problema é no intuito de delinear os pontos polêmicos e de apontar uma linha crítica que tenta superar, dialeticamente, este mal-estar. E por falar em dialética, vejamos os pontos de vista críticos de Antonio Candido, o qual opera justamente no confronto entre dois pontos de vistas aparentemente opostos que é o solo social e a forma estética; ou ainda como se costuma dizer: o contexto e o texto literário. Com vistas à superação deste surrado antagonismo, Antonio Candido trabalha com um modelo de análise materialista do texto ficcional.
Em vários momentos de sua crítica ele constrói um ponto de vista teórico baseado na dependência e na superação de nossa literatura, mediante o estudo da forma, na prosa e na poesia. Indica ainda os dois fenômenos que pontuaram as manifestações literárias no país, chamados por ele de cópia e rejeição. O primeiro fenômeno se manifesta no estrito servilismo aos modelos estrangeiros, característico de um “país novo” e da sua “consciência amena do atraso”. 6 O segundo fenômeno, o da rejeição, manifesta-se nos anos seguintes à proclamação da República, em que se rejeitaria o pai colonizador no afã da maioridade política e cultural.

Em ambos os casos, o crítico registra a ambivalência de procedimentos, que, vistos de um certo ângulo, podem ser complementares. Dessa maneira, a rejeição, que se materializaria em certa produção regionalista e pitoresca, ainda assim estaria na dependência daquilo que os países desenvolvidos esperavam do nosso atraso, pois “insinuando um regionalismo que, ao parecer afirmação da identidade nacional, pode ser na verdade um modo insuspeitado de oferecer à sensibilidade européia o exotismo que ela desejava por desfastio; e que assim se torna forma aguda de dependência na independência” (CANDIDO, Literatura e subdesenvolvimento, p. 157)
A superação destas duas tendências pode ser observada a partir dos romances de 30, os chamados “romances do nordeste” cujo conteúdo sócio-cultural já expressariam a consciência do subdesenvolvimento, “... por meio da tensão entre o dado local (que se apresenta como substância da expressa) e os moldes herdados da tradição européia (que se apresentam como forma da expressão)” 7 retomando, inclusive, a tradição romanesca de Machado de Assis naquilo que ela tem de mais crítica.
Antonio Candido chama de uma conduta dialética esse processo que rege os nossos movimentos entre o localismo e o cosmopolitismo. Segundo ele,

"O intelectual brasileiro, procurando identificar-se a esta civilização, se encontra todavia ante particularidades de meio, raça e história, nem sempre correspondentes aos padrões europeus que a educação lhes propõe, e que por vezes se elevam em face deles como elementos divergentes, aberrantes. A referida dialética e, portanto grande parte de nossa dinâmica espiritual se nutre desse dilaceramento, que observamos desde Gregório de Matos no século XVIII, até o sociologicamente expressivo “Grito imperioso de brancura em mim” – de Mário de Andrade – que exprime sob a forma de um desabafo individual, uma ânsia coletiva de afirmar componentes europeus da nossa formação." (Literatura e cultura, p. 110)

Essa dialética dilacerada ou constrangida que, mais uma vez, assinala a ambigüidade da dependência, também é salientada por Roberto Schwarz, em Oswald de Andrade, na conhecida frase de seu Manifesto Antropófago – Tupi or not tupi, that is the question – ou seja como diz Schwarz a respeito dessa involuntária dependência.: “...a busca da identidade nacional passando pela língua inglesa, por uma citação clássica e um trocadilho – diz muito desse impasse.” 8
Em vários de seus trabalhos críticos, Antonio Candido retoma objetivamente a questão, construindo a superação do problema da cópia e da originalidade através da análise detalhada da organização da obra, em que o contexto se materializa em forma. É claro que esta crítica materialista do texto literário (ainda chamada, muitas vezes e desfavoravelmente, de crítica de esquerda) comporta seus riscos. Um dos mais evidentes é a falta de mediação estética – esta sim muito importante – entre o texto e o contexto.
Por outro lado, a prática da análise formal das obras – praticada pelos formalistas e, principalmente, pelos estruturalistas – é bem mais fácil e confortável para o crítico.

Ao prender o texto nas malhas da forma, o crítico estruturalista lida apenas com significantes textuais, com determinadas constatações formais e mecânicas; ou seja ainda: lida com abstrações, uma vez que a relação do material lingüístico com o dado externo, do qual ele parte, é posta de lado com uma evidente tomada de posição aistórica.
Antonio Candido dá conta destes dois riscos e explica seus entraves, apontando a superação deles:

"... antes procurava-se mostrar que o valor e o significado de uma obra dependiam de ela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que este aspecto constituía o que ela tinha de essencial. Depois, chegou-se à posição oposta, procurando mostrar que a matéria de uma obra é secundária, e que sua
importância deriva das operações formais postas em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social, considerado inoperante como elemento de compreensão. " Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava os fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.” ( Crítica e sociologia. Literatura e sociedade, op. cit. p. 04.)

No seu texto crítico - A dialética da malandragem - 10 Antonio Candido formaliza a integração do contexto ao texto literário, ao analisar o romance de Manuel Antônio de Almeida – Memórias de um sargento de milícias. O crítico define o ponto de vista estrutural da obra a partir dos elementos que a compõem, assinalando uma representação do Brasil-Colônia, na primeira metade do século XIX, Assim, ele apreende um movimento que vai da “ordem à desordem”, configurando o universo da sociedade brasileira daquele tempo, entre o hemisfério constituído pela precária ordem institucional dos oficiais de Justiça, dos meirinhos, do clero e da própria milícia, protagonizada pelo Major Vidigal, e o hemisfério da boêmia, dos terreiros de feitiçaria, dos amores clandestinos e, enfim, daqueles que se colocavam à mercê das sansões do Rei. Antonio Candido demonstra como a estrutura do romance faz com que estes dois pólos – o da ordem e o da desordem – transitem de um para o outro, através de seus personagens, compondo o “mundo sem culpa” bem característico de uma, sociedade na qual uns poucos livres trabalham e os outros flauteiam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificências, da sorte ou do roubo miúdo [...] com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX. (Dialética da malandragem, op. cit., pp. 44/45)

Ainda em outro lugar trabalho chamado de Cortiço à cortiço , ele compara os desdobramentos estruturais do naturalismo francês, através do romance L´Assomoir, de Zola e O cortiço de Aluísio de Azevedo. E aí fica patente como o modelo importado, que ele define como forma da expressão, torna-se um modelo diferenciado através daquilo que ele define como a substância da expressão. Ou seja, a matéria brasileira, sua organização sócio-cultural construindo uma forma até certo ponto diferenciada do modelo francês do qual ele partiu, por meio da fidelidade ao contexto.
Assim, ele define o resultado da análise que se volta para o “problema da filiação de textos e de fidelidade aos contextos”, dizendo que “ao mesmo tempo Aluísio quis reproduzir e interpretar a realidade que o cercava, e sob este aspecto elaborou um texto primeiro.Texto primeiro na medida em que filtra o meio; texto segundo na medida em que vê o meio com lentes tomadas de empréstimo.” 9


O trabalho crítico revela alguns dados estruturais diferenciados entre os dois romances. Partindo de uma ideologia que determinava o homem como produto, de modo absoluto, as duas narrativas se estruturam em torno de cortiços. Mas Antonio Candido mostra a diferença entre o cortiço do romance francês e o do brasileiro. Em Zola, a ação se passa quase que inteiramente em um bairro operário de Paris, sem que haja interpenetração entre a classe burguesa e a proletária, evidenciando o dado de um contexto em que as classes eram realmente diferenciadas, inclusive em seus espaços. Em Aluísio,

Ao contrário de L´Assomoir, trata-se de uma história de trabalhadores intimamente ligados ao projeto econômico de um ganhador de dinheiro, por isso o romancista pôs ao lado da habitação coletiva dos pobres o sobrado dos ricos, meta visada pelo próprio João Romão. [...] A originalidade do romance de Aluísio está na coexistência íntima do explorado e do explorador, tornada logicamente possível pela própria natureza elementar da acumulação num país que economicamente ainda era semicolonial. (De cortiço a cortiço, p. 126)

Ainda falando dos espaços diferenciados e de como eles interferem na lógica dos respectivos romances, o crítico assinala que:

O cortiço francês em L´Assomoir é segregado da natureza e sobe verticalmente com seus seis andares na paisagem urbana espremida pela falta de terreno. O cortiço brasileiro é horizontal ao modo de uma senzala, embora no fim, quando o proprietário progride, adquire um perfil mais urbano e um mínimo de verticalização nos dois andares de uma parte nova da vila. Além disso, cria frangos e porcos, convive com hortas, a árvore e o capim invade terrenos baldios e vai para o lado da pedreira que João Romão explora.
Ligado à natureza, que no Brasil ainda era presença a ser domada, ele cresce, se estende, aumenta de volume e é conseqüentemente tratado pelo romancista como realidade orgânica, por meio de imagens orgânicas que o animam e fazem dele uma espécie de continuação do mundo natural. (De cortiço a cortiço, p. 134)

Além do mais, Antonio Candido revela um dado novo da composição do romance que, numa leitura mais de superfície, sempre é visto a partir do ponto de vista da oposição entre o português explorador e o brasileiro explorado. O crítico recoloca a questão de um ponto de vista mais profundo e estrutural, ou seja, o modo como o capital se desenvolve num país de economia periférica e a maneira como ele se assume, transformando-se em um dos princípios ordenadores do entrecho romanesco.
Desta maneira, o ponto de vista de muitos críticos, que enxergavam apenas o confronto entre o português explorador e o brasileiro explorado, numa análise dualista, se desfaz quando se constata as relações ordenadoras do romance. Roberto Schwarz, comentando a originalidade deste trabalho de Antonio Candido, define o ponto de vista a que chegou o último:

João Romão é um taverneiro português, fanaticamente acumulador, que não tem medo de trabalhar pesado, de se privar de tudo, de roubar o que for possível, ou de amigar-se com uma escrava, a quem usa de todas as maneiras. Aos poucos põe de pé um cortiço, onde explora indistintamente brasileiros e portugueses, brancos e negros, até ficar rico e entrar para a sociedade apresentável. O enriquecimento, perseguido com determinação alucinada, confere ao romance uma linha central de grande consistência e nitidez. Em sentido óbvio, esta decorre da motivação ou personalidade de João Romão. Mais profundamente, o crítico nota que ela apreende, pela primeira vez na literatura brasileira, o ritmo de acumulação do capital, nas condições peculiares do país. 10

Assim, posta de lado a noção da cópia e do original, vemos que o problema literário reside no âmbito que estrutura o projeto ficcional de uma determinada obra. Cabe ao crítico desentranhar e reordenar sua base formal, sempre atento aos vários signos que mobilizam o discurso social, ou ainda o contexto, e assim tornar possível a originalidade de sua crítica dentro do espetáculo caleidoscópio da cidade.
Levando-se em conta os argumentos apresentados, a ficção brasileira, através dos mais representativos autores, vem transformando em problema literário 11– no sentido positivo do termo – a estrutura de suas obras quando vistas em íntima relação com o chão histórico. E nesse aspecto, a crítica de Antonio Candido torna-se um bom exemplo desse contexto materializado em forma.

NOTAS:

[1] Alguns exemplos de ufanismo, temas do índice. Primeiro motivo de superioridade do Brasil: a sua grandeza territorial; V. Segundo motivo de superioridade: a sua beleza; VI. Terceiro motivo: o Amazonas; VII. A Cachoeira de Paulo Afonso; IX. A Baía do Rio de Janeiro; XII. Quarto motivo: a sua riqueza natural; e uma última amostragem: Sétimo motivo de superioridade do Brasil: nobres predicados do caráter nacional. In: Porque me ufano do meu país. Versão para Book e BooksBrasil. Fonte digital: Digitalização de edição em papel Laemert $ C. Livreiros – Editores, 1908.
[2] Idem: XXXIX: A escravidão no Brasil XXII. predicados do caráter nacional.
[3] ROMERO , Sílvio. História da Literatura brasileira. 7 ed., Rio de Janeiro: José Olympio/INL/MEC, 1980, 5 vol, p. 1506.
[4] ARARIPE JÚNIOR. Estilo tropical e Gregório de Matos. In: Araripe Jjúnior: teoria, crítica e história literária. Seleção e apresentação de Alfredo Bosi. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1978. Sobre a obnubilação brasílica, o crítico diz: “Na Introdução da Literatura brasileira declarei que na crítica dos materiais da história nacional tinha-me deixado impressionar profundamente pelos que se referem à lei assim pitorescamente denominada. Essa lei constitui o eixo dos meus trabalhos sobre o Brasil.” (op. cit, p. 310 ) .
[5] Ver a propósito da antropofagia oswaldiana e do movimento tropicalista o texto de Roberto Schwarz: O bonde, a carroça e o poeta modernista e Nacional por subtração. In: Que horas são?. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
[6] CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: Educação pela noite. São Paulo: Ática, 1987, p157.
[7] CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In: Literatura e sociedade. 5 ed.. São Paulo: Editora Nacional, 1976, p. 110.
[8] SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: Que horas são?, Op. cit. p. 32.
[9] CANDIDO, Antonio. Critica e sociologia. Literatura e sociedade. Op. cit., p. 04.
[10] SCHWARZ Roberto. Originalidade da crítica de Antonio Candido. São Paulo: Novos estudos CEBRAP, no 32. mar/1992, p. 40. Republicado em Seqüências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[11] SCHWARZ, Roberto: um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990, p. 11. Sobre o emprego deste “problema literário”, Schwarz explica: “Ao transpor para o estilo as relações sociais que observa, ou seja, ao interiorizar o país e o tempo, Machado compunha uma expressão da sociedade real, sociedade horrendamente dividida, em situação muito particular, em parte inconfessável. Nos antípodas da pátria romântica. O ‘homem do seu tempo e de seu país’ deixava de ser um ideal e fazia figura de problema.”

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

O Rio de MInha Aldeia

"O Tejo é o mais belo rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia." Fernando Pessoa

Ao longe, por sobre o ombro do Hotel Globo, ilumina-se o Rio Sanhauá ao por do sol. Acaricia sonolento as suas margens e a cidade de seu berço: Pa´ra e a´iba que a nomenclatura tupi diz ser um “rio mau”, impraticável, e outros o chamam de “rio que é braço de mar”. A cidade histórica é sua guardiã. Recuada no tempo, surge a Capitania Real da Parayba, em 1574. E o Rio Sanhauá, parceiro do Rio Paraíba, encanta a cidade que se abriu às suas águas, silenciosamente cúmplice de sua história. Assim é o rio da minha aldeia, belo porque é o rio que banha a novel cidade de João Pessoa, sua identidade mais recente, depois de ser liricamente chamada de Filipéia de Nossa Senhora das Neves, no ato de sua fundação, então sob o domínio colonizado de Felipe II, rei da Espanha e Portugal. Destinada a portar homenagens aos impérios conquistadores, em 1634, sob o domínio holandês, tem sua identidade mudada para Frederica, colocando o selo da Holanda na pessoa do rei Frederico Henrique. Após a retomada dos portugueses, na decantada batalha dos Montes Guararapes, a minha cidade passa a se chamar Parahyba, com muita graça histórica. Cumprindo sua metamorfose identitária, a cidade se reveste do fato trágico da morte do presidente João Pessoa, em 1930. Se a cidade se reveste de novos signos, o Rio Sanhauá apenas contempla essas mudanças. Acompanha também o malogro de suas puras nascentes. Agredido pela desordenada expansão urbana, ele clama por vozes que o ouçam e lhe minorem a degradação. A formação vegetal de sua mata ciliar está quase que totalmente perdida pela ação danosa de sua população ribeirinha que, ao provocar o assoreamento, comprime suas margens, turva suas águas e impede a biodiversidade. Seus manguezais em vias de extinção dificultam a vida dos catadores de caranguejos ao mesmo tempo em que retiram da mesa dos bares esta iguaria que faz a festa das praias domingueiras e dos turistas. Como pária inanimado, ele se irmana aos rios também agredidos que banham as capitais brasileiras. Mas os poetas desenham seu curso em palavras. Assim fala o Tietê de Mario de Andrade, o Capibaribe de Manuel Bandeira e o Sanhauá de Políbio Alves, que o traveste em signos e significados: “Sanhauá irresoluto/ emudece/ espaço Varadouro. Absoluto, arrebenta, cresce /revoltoso guerreiro. Atola/ transparente bicho/ indefeso corpo. Esfola/ fixo/ mineral/ massa impune/ pascenta póstumo/ fulgor matinal.”