segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Carta aberta ao Senhor Presidente Ignácio Lula da Silva, Presidente do Brasil.

Senhor Presidente,

Nós somos responsáveis pelas organizações políticas e populares haitianas. Nosso povo, o povo haitiano, se libertou a 204 anos das cadeia da escravidão. “nos ousamos ser livres”, declarou Jean Jacques Dessalines, no dia 1º de janeiro de 1804, quando ele proclamou esta que foi a primeira República negra do mundo, sendo chamada, então, de Haiti.
Hoje, nosso país é o mais pobre do continente americano. A carência alimentar abrange, diariamente, 3,3 milhões de nossos cidadãos. Uma vítima para cada 3 habitantes. A expectativa de vida para quem aqui nasce é de apenas 51 anos; 60% da população tenta sobreviver a cada dia com menos de dois dólares. Em nosso país, a taxa de mortalidade infantil é de 80 crianças para 1000 que nascem; enquanto que na França a proporção é de 4 crianças entre mil nascidas e na nossa vizinha ilha de Cuba é de apenas 7 para 1000 nascimentos.
Além dessa estatística desoladora, não houve calamidades internas que não se tenha abatido sobre nosso país. Enquanto isso, em revoltante contrapartida, mesmo depois de decorridos 2 séculos que nosso povo conquistou a soberania nacional, os defensores e descendentes dos colonos exploradores e capitalistas não cessaram de querer nos fazer pagar a audácia de termos querido constituir uma nação de homens e mulheres livres.
Nestes últimos decênios, nossa economia, nossa agricultura, nossos serviços públicos, nossos solos, têm sofrido o assalto das privatizações, das multinacionais e de planos de ajustamentos estruturais solicitados pelo FMI e pelo Banco Mundial.
Senhor Presidente, é certo que vós pudestes constatar, quando estivestes aqui em vossa visita oficial em maio último, as devastações causadas por tais políticas das quais os organizadores se encontram fora de nossas fronteiras devastadas, agravadas ainda, há dois meses, pela passagem sucessiva de 4 furacões.
Vós o sabeis. Nosso pobre povo como o povo brasileiro, pagou com sua carne e com seu sangue os decênios de regimes militares e de ditaduras que foram todas sustentadas, mesmo quando não lhe impuseram diretamente o governo dos poderosos. Estes chegaram até a pisotear a soberania da nação Haitiana, como foi o caso da primeira vez da ocupação humilhante de 1915 a 1934, organizada pelo governo dos Estados Unidos da América.
Nenhum povo da história não aceita sem reagir ao ver seu país ocupado; este foi o caso da primeira ocupação estrangeira, como está sendo hoje o caso da presença sobre o nosso solo dos regimentos da MINUSTAH. Estas tropas, sob o comando brasileiro, que em abril último, no momento em que centena de milhares de mulheres e de homens que não tinham mais nada para se comer, foram à rua para se manifestar, as tropas atiraram na multidão matando 6 manifestantes e fazendo centenas de feridos.
Estes regimentos da MINUSTAH que são responsáveis por intervenções as mais graves como em Vila Sol, com um saldo de dezenas de mortes em fevereiro de 2007. Reconhecidamente responsáveis por violações, incitação à prostituição de nossas jovens, etc.... poderiam se prevalecer de estar em nosso solo defendendo uma estabilização e uma paz? Mas Haiti não está em guerra com nenhum outro país. Quem tende a desestabilizar nosso país não são aqueles que lhe negam o direito à sua soberania nacional?
Senhor Presidente, o povo haitiano como todos os povos do Caribe, do continente e do mundo, deve ter o direito imprescindível de dispor de si mesmo, sem ingerência de nenhuma armada, de nenhum poderio, de nenhum governo estrangeiro.
Ele deve ter o direito de tomar a si mesmo as medidas de urgência para salvar seu país da miséria e da violência, para começar a reconstruí-lo. Ele não poderá fazê-lo senão com o restabelecimento da democracia, liberada de toda ocupação, de todo atentado à sua soberania.
O povo haitiano não tem necessidade de militares estrangeiros, não tem necessidade senão da ajuda fraterna de todos os povos irmãos e das organizações trabalhistas, populares e democráticas do Caribe e do continente americano.
Senhor Presidente, nós vos pedimos solenemente que retire as tropas brasileiras do Haiti. E se, como estamos convencidos, vós quereis verdadeiramente ajudar nosso povo buscar o caminho de sua democracia e de uma melhora da situação das massas haitianas, então substitua os 1200 soldados brasileiros por médicos, enfermeiros, bombeiros, técnicos e trabalhadores para reconstruir as estradas e todas as infra-estruturas destruídas pelos furacões.
Nós esperamos também que o Senhor Presidente proponha aos 40 outros países, que têm igualmente tropas na MINUSTAH façam o mesmo. Proponha que os 540 milhões de dólares US, que é o custo anual destes regimentos (cifra publicada no site da MINUSTAH) sejam dedicadas à reconstrução, à ajuda alimentar, à construção de escolas, de hospitais...
Nós abaixo assinados, organizações sindicais, políticas e populares haitianas, encaminhamos esta carta por intermédio de vosso embaixador, a quem nós vamos remetê-la.
Nós lhe pedimos que se faça o nosso intérprete. Pedimos também que vós, Senhor Presidente, aceiteis receber uma delegação de nossas organizações para que nós lhe expliquemos o sentimento e as exigências de nosso povo, que mais do que nunca quer afirmar sua soberania e num primeiro lugar solicita previamente a partida dos regimentos estrangeiros da MINUSTAH.
O povo haitiano, fortificado em suas tradições e nas lutas pela sua soberania, é um fervoroso partidário do estabelecimento das relações de igualdade e de cooperação entre as nações. As relações de submissão não fazem senão multiplicar os conflitos e provocar as guerras.
Pela presente carta, nós informamos que nos dias 12 e 13 de dezembro próximo, nós organizaremos no nosso país, em Porto-Príncipe, um encontro com militantes e cidadãos do continente para debatermos juntos as vias e os meios de recobrar nossa soberania, incompatível com a manutenção das tropas da MINUSTAH.
Aguardando vossa comunicação, receba, Senhor Presidente do Brasil, nossas respeitosas saudações e estejais certo de nosso profundo desejo de lutar até o fim pela soberania de nosso país.

Porto-Príncipe. 1º de novembro de 2008

Tradução do francês por Moema Selma D'Andrea

As organizações abaixo assinadas :
CATH : Centrale autonome des travailleurs haïtiens, Louis Fignolé St Cyr, Secrétaire Général
POS : Parti ouvrier socialiste haïtien, Marc Antoine Poinson, Secrétaire à l’organisation des départements
FESTREDH : Fédération syndicale de l’électricité d’Haïti, Dukens Raphaél, Porte parole
GIEL : Groupe d’Initiative des enseignants de lycées, Léonel Pierre, Secrétaire Général
ADFEMTRAH : Section des femmes de la CATH, Julie Génélus, Secrétaire Générale
GRAHLIB : Grand rassemblement pour une Haïti libre et démocratique, Ludy Lapointe Coordonateur Général
FOS : Fédération des ouvriers syndiqués, Raymond Dalvius, Responsable des relations publiques
Koreken : Coordination Résistance Contre les Ingérences, Jhon Wagner Edol, coordinateur général
UNAPFEH : Union Nationale pour la Protection des Femmes est des Enfants d’Haïti, Itiane DERIVAL, coordinatrice,
ACDIFED : Association Chrétienne des Femmes et des Enfants d’Haït, Sherly MICHEL,
FUNA : Femme Universitaire pour une Nouvelle Alternative, Yvonne PRINTEMPS, secrétaire générale,
FHVC : Femme Handicapée en Voie de Culminance, Kerlange PAULEMA, coordinatrice,
CHASS : Centre Haïtien de Service Social, Robinson DESIRE, secrétaire général adjoin,
GROSSOL : Groupe Solidarité, Ing. Poto Jean MARRAIS, secrétaire général,
ROFNA : Rassembement des Organisations de Femmes pour une Nouvelle Alternative, Nicole D MICHEL, coordnatrice,
FEMHA : Femme Haïtienne en Action, Gina DESIRE, coordinatrice,
AFVS : Organisation Femme Victime de Solino, Luthana AUGUSTE, coordinatrice,
JM : Jeune du Monde, Dukerline DORIVAL, coordinatrice,
RONA : Rassemblement des Organisations pour une Nouvelle Alternative, Ing. Georghy DESIRE, coordinateur général ,
COADMEDH : Coalition des Médecins Haïtiens, Dr Giles Labossière, coordinateur général,
GAPANA : Groupe d’appui pour l’Avancement et la Promotion de la production Nationale,Réginal Rebecca FRANCOIS,
MOFERPNH : Mouvement des Femmes de Rève pour une Nouvelle Haïti, Josy FAIDOR, coordinatrice

Capitu sou Eu ou é Ela? Afinal, Quem é Capitu?

"Todo texto contém sempre a promessa murmurada de alguma descoberta que se oferece como recompensa. É em função dessa descoberta que se estabelecem os limites (sempre arbitrários) do que será o trabalho interpretativo."
Berta Waldman


No conto de Dalton Trevisan – “Capitu sou eu” – a primeira referência literária que nos ocorre é, sem dúvida, a célebre frase dita por Flaubert, perante o tribunal que o julgava por “elogio ao adultério”, configurado na personagem feminina de seu romance: "Madame Bovary c´est moi”. Pela recorrência matreiramente intertextual, o conto do escritor curitibano situa o leitor no clima do adultério feminino, através do mais famoso romance sobre o tema. Mas não pára por aí a referência: a intertextualidade contida no título nos remete a outro romance não menos comentado, cujos engenho e arte até hoje desafiam os críticos de Machado de Assis. Vamos então tentar desvendar os artifícios que levaram Dalton Trevisan a se servir não da temática do adultério em si, mas da singularidade da personagem Capitu, enigma feminino, cuja identidade controversa é engendrada pela imaginação retrospectiva do marido e pela fabulação do bruxo de Cosme Velho.
Resumidamente, o conto narra a relação erótica que se estabelece entre uma professora de literatura, mais velha mas não muito, e um jovem aluno tipicamente modernoso, andando de moto barulhenta, bermudão e botinas de couro, sempre atrasado às aulas e de rendimento abaixo do medíocre. Para desespero da professora, que “reconhece o tipo: contestador, rebelde sem causa, beligerante.”, ele defende gratuitamente, sem argumentos, a infidelidade de Capitu. O caso evolui para uma relação erótica sado-masoquista, até acabar com a completa degradação da personagem feminina, após ser abandonada pelo “selvagem da moto”.
O curioso, neste caso, é que Dom Casmurro, o romance e seus desdobramentos, instigam a imaginação fabular de Dalton Trevisan e sua veia paródica, dessacralizadora. Já no livro Dinorá, ”, datado de 1994, o conto “Capitu sem enigmas” vem elaborado de forma digressiva: uma voz em off , irônica e debochada, toma a defesa dos primeiros críticos que pugnaram pela infidelidade de Capitu, em especial Alfredo Pujol que em 1917 diz o seguinte: “[...] Dom Casmurro é um livro cruel. Bento Santiago, alma cândida e boa, submissa e confiante, feita para o sacrifício e a ternura, ama desde criança a sua deliciosa vizinha. [...] Capitu engana-o com seu melhor amigo, [...] A traição da mulher torna-o cético e quase mal” Ironiza a crítica atual que aponta os lances ambíguos reveladores do ciúme e da insegurança de Bentinho, levando-o à condenação de Capitu, em especial Silviano Santiago, Roberto Schwarz e John Gledson. Cita vários trechos de Dom Casmurro, escolhidos intencionalmente, em que Bentinho elabora as provas “circunstanciais” do deslize de Capitu, como por exemplo:

"Tudo fantasia de um ingênuo e ciumento? Quer mais, ó cara: a prova carnal do crime? A Bentinho, que era estéril, nasce-lhe um filho temporão – “nenhum outro, um só e único”. Ei-lo o tão esperado: “De Ezequiel (menino) olhamos para a fotografia... a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele...” Um retrato de corpo inteiro, é pouco? “Ezequiel (adulto) reproduzia a pessoa morta. Era o próprio, o exato, o verdadeiro, Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pai."

Insinua lances duvidosos de D. Carolina, na cidade do Porto, ligando a esposa de Machado de Assis à infiel Virgília, à meio infiel Sofia e, para ele, à infiel Capitolina:

"Só uma peralta ignara (a nova crítica) da biografia (Carolina e seu passado amoroso no Porto) e temática do autor (ai Virgília, ai Capitolina, ai Sofia) para sugerir tal barbaridade."

De forma jocosa, ele parodia duplamente a linguagem retórica de Machado, no século XIX, e hoje em desuso, ao chamar a nova crítica de “peralta ignara”, ao mesmo tempo em que se serve da mesma ironia machadiana, quando este faz uso daquele vocabulário pedante e rebuscado.Com a ajuda de um narrador de primeira pessoa, ao mesmo tempo burlesco e malicioso, aparentemente descomprometido com a teia narrativa, ou seja com a ação motivadora do enunciado, o ato paródico se instala ao projetar duas identidades de Capitu: uma, a vítima da elite provinciana do século XIX e do machismo de Bento de Albuquerque Santiago, respaldada pela nova crítica; a outra, uma personagem que possui, com a traição, a identidade bem mais atraente (segundo ele) alinhada com as grandes heroínas burguesas de Flaubert e Tolstói, também do século XIX.

"Você pode julgar uma pessoa pela opinião sobre Capitu. Acha que sempre fiel? Desista, ó patusco: sem intuição literária. Entre o ciúme e a traição da infância, da inocência, do puro amor, ainda se fia que o bruxo do Cosme Velho escolhesse o efeito menor? Pó, qual o grandíssimo tema romanesco de então, as fabulosas Ema Bovary e Ana Karenina. [...] Inocentar Capitu é fazê-la uma pobre criatura. Privá-la de seu crime, assim a perfídia não fosse próprio das culpadas? Já sem mistério, sem fascínio, sem grandeza. Morreu Escobar não das ondas do Flamengo e sim dos olhos de cigana oblíquos e dissimulados. Por que os olhos de ressaca, me diga, senão para você neles se afogar? [...] Se a filha de Pádua não traiu, Machadinho se chamou José de Alencar.”

Nos trechos citados, o deboche do narrador se detém na escolha implícita do autor (ao manejar os cordéis da ficção) determinando a perfídia de Capitu, através da memória retrospectiva e sem lacunas de Bento Santiago. A paródia se afirma, inclusive, quando este narrador, dialogando com um emissor que não se manifesta enquanto textualidade, simula a voz autoritária de Bentinho, narrador unilateral, que também simula um diálogo com o leitor. Aprofundando o ato paródico, debocha do romantismo alencarino; advoga para Machado a filiação, sem mais nem menos, à corrente realista daquela época, desprezando conscientemente as armadilhas retóricas, a densidade psicológica e o chão social que se inscreve nos romances do escritor fluminense. Dalton Trevisan, ele mesmo um realista do conto contemporâneo, cujo olhar crítico e descritivo flagra as contradições do urbanismo provinciano de Curitiba, e que segundo Berta Waldman: “[..insere-se, historicamente, na linguagem desconfiada do realismo de um Flaubert, ou de um Machado de Assis]”
Ao fazer pouco caso das ambigüidades retóricas da escritura machadiana e ao se apropriar da personagem feminina de Dom Casmurro para seu deleite paródico, Trevisan retira o enigma de Capitu e do famoso romance que, segundo Roberto Schwarz,
"[...] tem algo de armadilha, , com lição crítica incisiva – isso se a cilada for percebida como tal. Desde o início há incongruências, passos obscuros, ênfases desconcertantes, que vão formando um enigma."


Diferentemente de “Capitu sem enigmas”, o conto “Capitu sou eu” tem como estratégia retórica um narrador onisciente habilmente camuflado numa máscara de distanciamento. As frases curtas, as construções elípticas, principalmente as omissões propositais dos verbos, o ritmo ágil, cinematográfico, tudo concorre para moldar esse narrador que, dos bastidores, faz a luz dos flash incidir sobre os personagens. São eles que levam a ação às últimas conseqüências. A relação ambígua da personagem machadiana é reelaborada em outra experiência, desta vez contemporânea, e aparentemente sem ambigüidade, uma vez que suas ações amorosas são amplamente descritas, fazendo jus às conquistas femininas dos anos sessenta do século XX para cá. A ambigüidade permanece na condição feminina atual, que se triparte entre exercer uma profissão, ser mãe de família (tem um filho que mora com ela) e ser uma mulher divorciada, ao mesmo tempo em que tem dentro de si o estopim erótico da fêmea. Tal como é definida a outra Capitu, ela é igualmente sedutora e vítima. Na sala de aula, abomina o comportamento do aluno:

“[...] o único que sustenta a infidelidade de Capitu. Confuso, na falta de argumentos supre-os com veemência e gesticulação arrebatada: infiel, a nossa heroína, pela perfídia fatal que mora em todo coração feminino. Insiste na coincidência dos nomes: Ca-ro-li-na, da mulher do autor (com os amores duvidosos na cidade do Porto), e o da personagem Ca-pi-to-li-na...
A traição da pobre criatura, para ele, é questão pessoal, não debate literário, ou questão psicológica. Capitu? Simples mulherzinha à-toa. “Mulherzinha, já pensou?” ela se repete, indignada. “Meu Deus, este sim, é o machista supremo. Um monstro moral à solta na minha classe” E por fim: “Ai da moça que se envolver com tal bruto sem coração.”

Mas, como o outro Bentinho que se narra descrevendo-se tímido e ingênuo em relação à sagacidade e coragem mental de Capitu, este exemplar do sexo masculino, versão século XX, é descrito pelo narrador como: “[..] na verdade, um tímido em pânico, denunciado no rubor da face, que a barba não esconde. E, aos olhos dela, o torna mais atraente, um cacho de cabelo negro na testa.” Como presença masculina na pele do aluno seduzido/sedutor, o narrador elege a voz feminina com destaque nos diálogos, em que a fala masculina, aparentemente lacunar, é assinalada por um sinal de interrogação, várias vezes reiterado na sucessão dos diálogos.
E como a outra Capitu, essa anônima professora conturba o aluno com um comportamento dual:

"Nas aulas, por sua vez, ela que o confunde: sadista e piedosa, arrogante e singela. Sentada no canto da mesa, cruza as longas pernas, um lampejo de coxa imaculada. E no tornozelo esquerdo, a correntinha trêmula – o signo do poder da domadora que, sem o chicotinho ou pistola, de cada aluno faz uma fera domesticada. Elegante, blusa com decote generoso, os seios redondos em flor – ou duas taças plenas de vinho branco?"

À medida em que a relação amorosa evolui, o papel de dominadora, inclusive intelectual, vai se invertendo e ela fica à mercê dos seus próprios desejos e do erotismo da situação: “ Escrava, sim, rastejadora e suplicante ou professora despótica ainda na cama:” E à medida que caem suas defesas morais, sua auto-estima também se desfaz:

"Pela manhã, depois que ele se vai, chora de vergonha. “Como eu fui capaz... Não só concordei. Quem acabou tomando a iniciativa? Só eu. Euzinha. Não jurei que nunca, nunca eu faria... Meu Deus, como beijar agora meu filho? Ó Jesus, sou mulherzinha à-toa? Eu culpada. Eu... Capitu?"

Ao fim da relação, configurada também pela rejeição e conseqüente abandono, o narrador constata algo que também poderia ser dito a Capitu de Dom Casmuro: “Sem perdão ela foi condenada, sequer o benefício da dúvida.” E logo mais adiante reafirma a intertextualidade: “Ai dela, mesma situação da outra, enjeitada lá na Suíça pelo bem-amado, desgracido machista.”.Meio na troça, meio a sério, ele referenda a posição da nova crítica que aponta a posição de classe e a cultura patriarcal (entre outras coisas) como a causa reveladora do machismo de Bento Santiago.
Afinal, sem mais defesas, a professora capitula naquilo que seria essencial à sua dignidade – a coerência profissional - e confere ao mau aluno os louros literários: “[...] apesar da péssima prova, graduado por média, com distinção em Literatura.”. Resta ainda a essa Capitu moderna a derradeira das humilhações: “E, última tentativa de reconquistar o seu amor, publica na Revista de Letras um artigo em que sustenta a traição de Capitu.”
É evidente que o conto dialoga com a Capitu do Dom Casmurro; um diálogo áspero, paródico, em que o modelo original é distorcido, como uma imagem vista nesses espelhos dos parques de diversão. Deformada de maneira grotesca, a identidade de Capitu é fragmentada em outras identidades ficcionais, adúlteras e/ou sedutoras, forjadas pela tradição da literatura clássica na qual se insere o escritor fluminense.
O que está em jogo, nos parece, é a condição feminina e o desgaste das relações amorosas e sociais numa sociedade em que a mulher é duplamente reificada: no geral, pela estrutura machista que a mantém e subjuga; no particular pela relação a dois. O que mudou do século XIX para cá? Na ficção, fiel ao modelo machadiano, ambas Capitus são punidas: uma com o desterro de luxo na Suíça; a outra transformada numa “mulherzinha à-toa” na boca do aluno machista, e tal como a Capitu de Mata-cavalos que estava “dentro da outra, como a fruta dentro da casca”, segundo a definição de exemplar determinismo de Bento de Albuquerque Santiago.
Como diz, Berta Waldman a respeito da temática de Dalton Trevisan: “Postos frente a frente (cena) homem e mulher, em situação de peleja amorosa, reiteram sempre a relação minada.” Em relação ao seu modus operandi ficcional, a apropriação acima demonstrada é reveladora de que Trevisan está consciente de que toda representação oculta, por trás da máscara narrativa, a soberania das escolhas do autor, ou como diz Maria Lúcia Dal Farra: "Manejador de disfarces, o autor camuflado e encoberto pela ficção, não consegue fazer submergir somente uma característica – sem dúvida a mais expressiva – a apreciação. Para além da obra, na própria escolha do título, ele se trai, e mesmo no interior dela, a complexa eleição dos signos, a preferência por determinado narrador, a opção favorável por esta personagem [...] denunciam sua marca e sua avaliação. "
A Capitu de Machado será sempre um enigma na nossa literatura: decifra-me ou permaneço desafiando-te. E o autor sempre poderá dizer: Capitu sou eu, sedutora e indefinida. Já a Capitu de Trevisan é explicitamente vítima do “Bentinho”, decalcado no machista do século XX, o que confirma a paródia da condenação de “Capitu sem enigmas “ e o diálogo intertextual do autor curitibano com o autor de Dom Casmurro.
Então podemos dizer com Machado de Assis e Dalton Trevisan, e à maneira de Flaubert: “Capitu sou eu”.

Casablanca, Clichês? - Tradução

Umberto Eco, Casablanca, or the clichés are having a ball - tradução de Moema Selma D'Andrea.

Quando pessoas de seus cinqüenta anos sentam defronte a uma televisão para assistirem a uma reapresentação de Casa Blanca, isto é ordinariamente um tópico nostálgico. Contudo, quando o filme foi mostrado a universitários americanos, rapazes e moças saudaram cada cena e cada diálogo clicherizado (“Reunir os suspeitos usuais”, “Foi um bombardeio ou meu coração disparando?” – ou até mesmo quando Bogey fala “criança”) com aplausos comumente destinados aos espetáculos de futebol. Eu tenho visto, inclusive, uma jovem audiência italiana, em reapresentações no cinema, reagir da mesma forma. Qual é, por conseguinte, a fascinação de Casa Blanca?
A questão tem lá sua legitimidade, porque, falando esteticamente, (ou por um exato senso crítico) Casa Blanca é na verdade um filme medíocre. È uma tira de quadrinhos, uma mixórdia, com uma baixa credibilidade psicológica e com uma pequena seqüência de efeitos dramáticos. E nós sabemos a razão disto: o filme foi sendo filmado ao longo de sua produção, e até o último momento o diretor e o roteirista não sabiam se Ilse abandonaria Victor ou Rick. Portanto, foram aqueles momentos de inspirada direção que provocaram a arrancada de aplausos pela inesperada ousadia, de fato representando decisões tomadas no auge do desespero. Por conseguinte, o que é responsável pelo sucesso desta cadeia de peripécias, ou atribulações, em um filme que é presentemente bem avaliado, visto por uma segunda, terceira e quarta geração, arrancando aplausos reservados para ária de ópera que gostamos de ouvir repetidas vezes, ou o entusiasmo que nos acomete por uma excitante descoberta? Existe mesmo um elenco formidável atores. Mas isto não é tudo. Estão presentes os ingredientes dos amores românticos – ele amargo, ela terna – mas em ambos isto é visto como um favorecimento. E Casa Blanca não é Stagecoach, outro filme periodicamente revisitado. E o que mais? Tentaram ler Casa Blanca como T.S. Eliot releu Hamlet. Atribui-se este encantamento não a um bem sucedido trabalho (atualmente considera-se que Hamlet é uma das obras menos afortunadas de Shakespeare) porém alguma coisa se lhes opõe: Hamlet foi o resultado de uma mal sucedida fusão entre alguns prematuros Hamlets, os quais teve a vingança como tema (a loucura como estratégia) e mais um cujo objetivo foi o auge da crise, configurada pelo pecado da mãe, tendo como conseqüência a discrepância entre a excitação nervosa de Hamlet e a incerteza e improbabilidade do crime de Gertrude. Crítica e público acham Hamlet bonito porque é interessante, e o julgam interessante porque é bonito.
Numa menor escala, a mesma coisa aconteceu em Casablanca. Forçados a improvisar um enredo, os autores misturaram um pouco de tudo e, nessa mistura, eles criaram um repertório de confiável legitimidade. Quando a escolha desta qualidade vê-se limitada, o resultado é um filme banal, um produto massificado, ou simplesmente kitsch. Além do mais, quando esta mistura é usada exagerada e indiscriminadamente, o resultado é uma arquitetura semelhante à Igreja da Sagrada Família de Gaudi, em Barcelona. Produz uma sensação de vertigem, um golpe de brilhantismo.
Tudo isto não nos permite esquecer como o filme foi feito e como nos foi apresentado. Ele se abre num lugar essencialmente mágico – Marrocos, o Exótico - e começa com uma sugestão de música árabe que se dissolve na Marselhesa.
Desta forma, ingressamos no Rick´s Place ouvindo Gershwin. África, França, América. Imediatamente, um entrelaçamento de arquétipos ancestrais nos aproxima do clima cinematográfico. São estas situações que têm presidido estórias incessantemente através dos tempos. Usualmente, para fazer um bom filme é suficiente apenas um único uso de situações arquetípicas. Um amor infeliz, por exemplo, ou um desenlace amoroso. Mas Casablanca não se satisfez com isto: ele usou-as todas. A cidade é a passagem para a Terra Prometida (ou, se se preferir, a passagem Noroeste). Tanto é assim que a passagem se constitui a pedra de toque, o único caminho (“o caminho e o caminho e o caminho” fala em off uma voz no início.) A passagem para a sala de espera da Terra Prometida requer uma Chave Mágica, o passaporte. É em torno da conquista desta chave que as paixões se desencadeiam. O dinheiro (que surge na forma de variados ícones, usualmente como um Jogo Fatal, a roleta) poderia dar a impressão de ser o meio para obter a Chave. Mas finalmente nós descobrimos que esta chave pode ser obtida somente através de uma Dádiva – uma doação do passaporte; além disso, a doação acarreta em Rick o Desejo de seu próprio sacrifício. Por sua vez, é também a história de uma ciranda dos Desejos, nos quais só dois deles serão contemplados: aquele de Victor Laszlo, o mais genuíno dos heróis e o outro do casal búlgaro. Em conseqüência, todos aqueles cujas paixões são impuras fracassam. Por este caminho, nós temos um outro arquétipo: o triunfo da Pureza. O impuro não alcança a Terra Prometida, nós os perdemos de vista antes disso. Mas eles alcançam a pureza pelo sacrifício – e este o leva à Redenção. Rick resgata não somente a si próprio mas também o capitão da polícia francesa. Nós percebemos, implicitamente, a existência de duas Terras Prometidas: uma a América (para muitos através de uma meta artificial), e a outra é a Resistência – a Guerra Santa. Aquela para onde Victor parte e aquela para onde Rick e o Capitão francês vão aliar-se a de Gaulle. E se o recorrente símbolo do aeroplano surge freqüentemente no vôo para a América, a Cruz de Lorena aparece apenas uma vez antecipando o outro gesto simbólico do Capitão, no fim quando ele arremessa à distancia a garrafa de água de Vichy enquanto o avião está partindo. Uma outra transmissão do mito percorre todo o filme: o sacrifício de Ilse em Paris, quando ela abandona o homem amado, após o retorno do herói ferido. A búlgara sacrifica a lua de mel quando ela própria cede sua felicidade em favor de seu marido. Da mesma forma, Victor se sacrifica quando se prepara para deixar Ilse partir com Rick, contanto que ela fosse salva.
Nesta orgia de arquétipos (acompanhada pelo arquétipo do Servo Fiel, tema da relação de Bogey com o pianista negro Dooley Wilson) está inserido o tema do Amor Infeliz: infeliz para Rick que ama Ilse e não pode tê-la; infeliz para Ilse que ama Rick e não pode partir com ele; enquanto Victor é infeliz porque compreende, na realidade, não possuir o amor de Ilse. A reciprocidade de amores infelizes produz voltas e reviravoltas: no início, Rick é infeliz porque não compreende o motivo de Ilse tê-lo deixado; enquanto Victor é infeliz porque não compreende o motivo da atração de Ilse por Rick; finalmente Ilse é infeliz porque não entende o motivo de Rick tê-la deixado partir com seu marido.
Estes três amores infelizes (ou Impossíveis) tomam a forma de um triângulo. Além do mais, no arquétipo do triângulo sentimental há um Marido Traído e um Amante Vitorioso. Aqui os dois homens sofrem a perda, mas nesta derrota (e pairando acima dela) um elemento adicional contempla a trama; no entanto, tal a maneira sutil como se apresenta, só dificilmente nós podemos perceber. Neste elemento, muito subliminarmente, uma sugestão de amor viril ou Socrático paira no ar. Rick admira Victor; Victor é ambiguamente atraído por Rick e isto parece algo quase visível, como se cada qual dos dois jogassem o duelo sacrificial para satisfazer o outro. Em todo caso, como nas Confissões de Rousseau, a mulher se coloca como um elo intermediário entre os dois. Ela própria é destituída de valor positivo; apenas os dois homens o possuem.
Em oposição a este pano de fundo carregado de ambigüidades, ambos os personagens são figuras estratificadas, posicionadas para o bem ou para o mal. Victor joga um duplo papel como um instrumento de ambigüidade na história deste amor, e como um agente iluminado na intriga política – ele é a Beleza em oposição à Besta Nazista. O tema da Civilização versus Barbárie envolveu-se com outros, e em direção a um Retorno Odisseico somou-se à ousadia de uma Ilíada explicitamente bélica.
Circundando esta dança de mitos eternos, nós percebemos os mitos históricos, ou mais precisamente os mitos do cinema devidamente requentados. Bogart, ele próprio, personifica um pouco três deles: o Aventureiro Ambíguo, composto de cinismo e generosidade, o Amante Ascético, e ao mesmo tempo é um Alcoólatra Redimido (ele torna-se alcoólatra para ser, subitamente redimido, ao passo que já era um ascético nato). Ingrid Bergman é uma Enigmática Mulher, ou Femme Fatale. Em razão disto, surgem as canções míticas:They´re Playing Our Song; The Last Day in Paris; América, África, Lisbon as a Free Pot; e a Border Station, ou Last Outpost on the Edge of the Desert.
Há ainda a Legião Estrangeira (cada personagem possui um diferente nacionalidade e uma diferente história para contar) e finalmente há o Grande Hotel (pessoas indo e vindo). Rick´s Place abriga um círculo mágico onde tudo pode acontecer (e acontece): amor, morte, perseguição, espionagem, lances de sorte, seduções, música, patriotismo (A origem teatral do enredo, e sua pobreza de meios, leva a uma admirável condensação de eventos em um único cenário). Este lugar pode ser Hong Kong, Macao, l´Enfer du Jeu, uma antecipação de Lisboa igual a Showboat.
No entanto, precisamente porque existem tantos arquétipos, precisamente porque Casa Blanca cita inumeráveis filmes, e cada ator repete um lance representado em outra ocasião, a ressonância da intertextualidade seduz o telespectador. Casa Blanca traz com isto, semelhante a um rastro de perfume, outras situações as quais levam o telespectador a se entregar completamente e de boa vontade, acolhendo-as, sem se dar conta de outros filmes que só apareceriam mais tarde, tais como To Have and Have not, quando Bogart representa de fato o herói de Hemingway, enquanto aqui em Casa Blanca ele já carrega uma conotação hemingwaynesca pelo simples fato de Rick, da maneira como nos foi informado, lutou na Espanha (e igual a Malraux ajudou a Revolução Chinesa). Peter Lorre traz consigo uma reminiscência de Fritz Lang, Conrad Veidt envolve seu oficial germânico num pálido aroma do The Cabinet of Dr. Caligari – ele não é um implacável executor, mas um noturno e diabólico César.
Por tudo isto Casa Blanca não é um único filme. Ele é muitos filmes, uma antologia. Provavelmente, e de uma forma acidental, ele si fez a si próprio, contra a intenção de seus autores e atores, que tiveram, por conseguinte, uma pequena parcela sobre seu controle. Esta é a razão de ele ir na contramão das teorias estéticas e das teorias cinematográficas. Para tanto, ele se revela com um poder narrativo quase telúrico, ou seja, em seu estado espontâneo sem que a Arte intervenha ou discipline. Por isso nós podemos aceitá-lo quando os personagens mudam de humor, moral e psicologicamente, de um momento para o outro; quando conspiradores tossem para interromper uma conversa se um espião se aproxima; quando prostitutas choram ao som de La Marseillaise. Quando todos os arquétipos explodem despudoradamente, nós alcançamos profundezas homéricas. Dois clihês nos fazem rir. Uma centena deles nos comove. Por esta razão, nós percebemos vagamente que eles dialogam entre si, celebrando um colóquio. Assim como no auge do sofrimento pode-se encontrar um prazer sensual e assim como o auge da perversão toca de perto a energia mística, também o auge da banalidade permite-nos capturar um vislumbre do sublime. Algo agiu no lugar do diretor. Se não foi nada disso, então é um fenômeno digno de admiração.

O Xangô de Baker Street, ou A Feição Ilustrada na Terra Tropical.

Romance de entretenimento, como o chamaria José Paulo Paes, o best-seller de Jô Soares veio para ficar e merece algumas considerações. Sem poder ser classificado como uma literatura cult, o romance tem tudo para prender o leitor brasileiro, acostumado às importações massificadas dos best-sellers do primeiro mundo, diferenciando-se por destacar, ficcionalmente, um período da nossa sociedade do século XIX, bem conhecida da literatura erudita de Machado de Assis. Sob a feição de um romance policial, esconde-se uma estratégica crônica dos costumes da capital do país, uma burlesca, mas sutil, caricatura de uma sociedade colonial afrancesada, onde a feição ilustrada de um detetive de ficção - Sherlock Holmes - e seu famoso poder dedutivo se vêem obnubilados pela não menos poderosa força dos trópicos. Mas vamos por partes.
Consideremos primeiro a diferença entre literatura erudita e literatura de entretenimento, também rotulada por alguns críticos - numa única direção e de uma forma homogeneizadora - como cultura de massa, literatura kitsch, ou ainda como best-seller. São afirmações contundentes, que se por um lado apontam o estereótipo e a banalização contidos em alguns exemplos desta prosa, por outro opõem simplesmente a tal “literatura” a uma arte da escrita que problematiza a nossa pobre vida dentro de uma proposta artisticamente bem mais elaborada. Tematizando entre estes dois pólos excludentes, os críticos da cultura de massa apegam-se também a estereótipos ideológicos, muitos deles advindos da “alta cultura” e do bom gosto das classes dominantes, envolvidas elas também no processo da comercialização dos bens simbólicos.
No contexto brasileiro tal situação é bastante complicada. Na sua maioria, a reflexão sobre estes dois tipos de prosa romanesca provém de estudiosos europeus, cujo contexto de modernização tanto industrial quanto dos bens simbólicos já se achava razoavelmente solidificado desde o século XIX, e isto faz uma grande diferença para o nosso contexto. Em outras palavras, “o Modernismo ocorre no Brasil sem modernização”, em meio à quase inexistência da indústria do livro e de uma grande massa populacional analfabeta ou semi-alfabetizada. Segundo ainda Renato Ortiz (que segue a pista deixada por Roberto Schwarz nas “idéias fora do lugar”) “... o ideário liberal chega (ao Brasil) antes do desenvolvimento das forças sócio-econômicas que o originaram no contexto europeu, ele se encontra na posição esdrúxula de existir sem se realizar.” Veremos mais adiante como isto toca de perto a temática que Jô Soares desenvolve no Xangô de Baker Street.
Lembremos ainda da colocação que Antonio Candido faz sobre a literatura como um sistema triádico, formado por autor- obra- público. Sem entrar no mérito da famosa questão do “seqüestro do barroco” - tão insistentemente lembrada quando se trata da posição do crítico na Formação da literatura brasileira: momentos decisivos - temos de admitir que a existência de um público ledor fortalece a produção literária, que, sem ele, circularia apenas no meio restrito de amigos e alguns poucos leitores esclarecidos.
Assim, entre a ilustração européia e o verniz esclarecido da pequena parcela da classe dominante brasileira a diferença é gritante. E o que dizer da grande maioria que não tem acesso aos bens simbólicos das grandes obras artísticas, sejam elas na música, na pintura ou na literatura? Acontece então um fenômeno inverso: essa população de semi-letrados, ao tomar contato com a cultura urbana, são literalmente assimilados pela linguagem televisiva, ou pela cultura massificada.
Voltamos então ao problema da precariedade da indústria do livro no nosso país, pois segundo José Paulo Paes, “Se a televisão conseguiu em tempo relativamente breve o que a indústria do livro não conseguiu até hoje, foi talvez devido à circunstância de ter chegado cedo a um país onde o livro chegou tarde. Só a partir dos anos 30 é que se pode falar de uma indústria editorial realmente brasileira; até então, grande parte das nossas minguadas edições eram impressas fora, em Portugal e na França. [...] Se o livro continua sendo insubstituível como instrumento de cultura e saber, perde de longe para a televisão como meio de entretenimento. [...] Para ser fruído, o livro, mesmo de entretenimento, exige um mínimo de esforço intelectual, dispensável na imagem falada no vídeo.”
Cheguemos agora à discussão sobre a literatura de entretenimento e seu público brasileiro. Ainda seguindo a pista de José Paulo Paes, a uma produção nacional de literatura de entretenimento, com os encargos promocionais para o seu reconhecimento, a industria cultural brasileira preferiu “adquirir os direitos de tradução de best-sellers estrangeiros que passaram por seus países de origem pelo teste da popularidade e aqui chegam já aureolados de prestígio publicitário. Um caso, portanto, menos de substituição de importações que de puro e simples transplante, típico daquele fluxo unidirecional entre centro e periferia a que o subdesenvolvimento econômico constrange.”
Numa outra ponta, o escritor brasileiro - por não ter o suporte de uma desenvolvida indústria livresca e, correlatamente, de um público de leitores que não lhe dá a contrapartida do lucro - este criador de ficção se vê forçado a se “amparar” no Estado, que passa a exercer o papel de um novo “mecenas” nesta nossa “modernidade”. É o caso de grandes escritores brasileiros, entre eles Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego, Murilo Mendes e do próprio Machado de Assis no século XIX.
Voltemos ao ponto de partida que foi a convivência de uma literatura erudita ao lado da literatura de entretenimento. Em favor da última, diz Umberto Eco: “Em muitas dessas sisudas condenações do gosto massificado, no apelo desconfiado a uma comunidade de fruidores ocupados unicamente em descobrir as belezas ocultas e secretas da mensagem reservada da grande arte, ou da arte inédita, nunca se dá lugar ao consumidor médio (a cada um de nós na pele do consumidor médio), que, no fim de um dia de trabalho, pede a um livro ou a uma película o estímulo de alguns efeitos fundamentais (o arrepio, a risada, o patético) para restabelecer o equilíbrio da própria vida física e intelectual.”
Ora, são justamente estas causas que José Paulo Paes questiona no já citado trabalho. “Num país como o Brasil, de público ledor ainda reduzido, já ele não consegue viver da pena ou da máquina de escrever. A dificuldade de profissionalizar-se ajuda a explicar a quase ausência, entre nós, daquele tipo de artesão despretensioso de cuja competência nasce a boa literatura de entretenimento. [...] Numa cultura de literatos como a nossa, todos sonham ser Gustave Flaubert ou James Joyce, ninguém se contentaria em ser Alexandre Dumas ou Agatha Christie. Trata-se obviamente de um erro de perspectiva: da massa de leitores destes últimos autores é que surge a elite dos leitores daqueles, e nenhuma cultura realmente integrada pode dispensar de ter, ao lado de uma vigorosa literatura de proposta, uma não menos vigorosa literatura de entretenimento.”



2. O xangô de Baker Street, do conhecido entrevistador de televisão Jô Soares, está a mais de sete semanas ocupando o primeiro lugar na lista de sucessos de ficção, superando, inclusive o livro Chatô, do jornalista Fernando de Morais, que trata da biografia de Assis Chateaubriand. Se considerarmos a enxurrada de publicações biográficas e autobiográficas - aqui e lá fora, coincidentemente produzidas por jornalistas, além dos livros de “apoios” morais, existenciais, místicos e sexuais, etc. - já poderemos avaliar que a ficção de Jô Soares caiu no gosto do público com mais de 150 mil livros vendidos; algo inédito no Brasil para escritores iniciantes. Devido ao seu inegável talento como humorista e ao seu programa televisivo - que por sinal atinge uma boa parcela de espectador cult - o romancista corre o risco de ser ofuscado pela fama que desfruta na midia.
Afinal de que trata o romance, ou melhor, como enquadrá-lo dentro do gênero romanesco? É uma das primeiras preocupações de quem faz resenhas ou comentários e mesmo para os críticos que analisam a literatura de ficção. Quase todos afirmam, de cara, tratar-se de um romance cômico-policial, como está escrito na apresentação escrita na orelha do livro. O que não deixa também ter sua parte de verdade. Se ficarmos por aí, teremos então uma leitura de entretenimento, um rótulo que também satisfaz, já que a maioria de seus leitores pertencem a uma mídia que procura um desafogo para suas tensões e um refresco para os problemas do dia-a-dia.
Algo porém chama a atenção: em um país onde a crise financeira não dá descanso e torna incerto o dia de amanhã, adquirir um livro pelo preço de 24.00 reais não deixa de ser um luxo. E também não deixa de ser interessante a solução encontrada por alguns leitores; quem conta é o próprio Jô Soares em recente entrevista para a revista Isto é (22.11.95): um grupo de três pessoas aproxima-se dele e pede três autógrafos para um único livro; explicaram então que tinham se cotizado para comprar o romance.
Mas voltemos ao romance e à sua forma. Resumidamente vamos falar de seu enredo. A ação romanesca se passa no Rio de Janeiro, século XIX, e mais precisamente durante o reinado de D. Pedro II. A corte está em êxtase pela chegada da atriz francesa Sarah Bernhardt para uma longa temporada no Imperial Teatro de São Pedro de Alcântara, na praça da Constituição, no Rossio. Ambos os dados são referencialmente verídicos. Paralelamente ao acontecimento social, a intriga envolve indiretamente o Imperador no roubo de um famoso violino Stradivarius, que ele tinha presenteado a uma amiga, a baronesa de Avaré. Segundo os potins da cidade (leiam-se fofocas) a amizade dos dois incomodava sobremaneira à Imperatriz Tereza Cristina. Para solucionar o desaparecimento, o Imperador aceita a sugestão da atriz de quem Sherlock Holmes é amigo e o convida a vir ao Rio de Janeiro para desvendar o mistério do roubo do violino, o qual, naturalmente, se fará acompanhar de seu amigo Dr. Watson.
Eis que entra o dado ficcional. Um imperador brasileiro, ligado à história do país, convida um ser de ficção a participar da trama através de uma personagem real - a atriz Sarah Bernhardt - que, por sua vez, se diz amiga da personagem criada por Conan Doyle. Temos assim dois planos narrativos e intercambiáveis: na camada superficial, o leitor depara-se com personagens verídicos, pertencentes à vida da corte, nas pessoas de intelectuais como Olavo Bilac, Aluísio e Artur de Azevedo, Guimarães Passos, os compositores Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth, Paula Nei, Coelho Neto, José do Patrocínio, ao lado de seres de ficção como marqueses, barões e viscondes de nossa nobreza caramuru - como diria o conhecido “Boca de Inferno”. E esta parte do romance compõe uma deliciosa crônica de costumes da capital do Império, com muita malícia e um humor sutilmente crítico.
Numa segunda camada, a trama torna-se mais apimentada pelo assassínio em série de mulheres jovens. O famoso detetive inglês envolve-se com o núcleo das investigações criminais, a convite do delegado Pimenta, um personagem bonachão e medianamente inteligente. Ao todo são quatro mortes e todas elas executadas por um psicopata misterioso, inteligente, cujo móvel dos assassinatos tem, evidentemente, um fundo freudiano. Ao tomar conhecimento dos crimes (àquela altura apenas dois) o detetive inglês cria um neologismo atual:

“ Em toda minha carreira nunca vi nada semelhante, Tirar brutalmente a vida dessas jovens, sempre da mesma forma e sem o menor propósito. O homem é um demente que gosta de assassiná-las em série, é o que eu chamaria de serial killer. Isto mesmo, serial killer - decretou Sherlock Holmes cunhando a expressão”.

E assim, na ficção de Jô Soares, o século XIX brasileiro se antecipa às plurissignificações idiomáticas que as exigências da sociedade moderna adota, em virtude de sua complexidade. Antecipa-se (e apropria-se) igualmente à antropofagia oswaldiana: de provincianos e atrasados, passaríamos a adiantados na superioridade semântica, mesmo tendo sido criado pelo estrangeiro, mas cuja causa e efeito se encontram aqui. A ação prossegue, com o assassino deixando propositais pistas, tais como uma corda de violino no corpo de cada vítima, com sua correspondente nota musical, - além de arrancar-lhes o par de orelhas. No vai-vem das delícias tropicais Sherlock Holmes confunde-se em seus poderes dedutivos, a ponto de ignorar indícios que lhes caem às mãos.
Vejamos agora de que maneira, o autor subverte a lógica linear criada pela ficção detetivesca. Desde a criação do romance policial, cuja máxima criação ainda é atribuída a Edgar Allan Poe, com seu célebre ilustrado e dedutivo Monsieur Dupin, desvendando Os crimes da rua Morgue, sua tipologia segue mais ou menos regras estabelecidas: há ou houve um crime (ou um roubo) e alguém que vai tratar de elucidar o enigma. Trata-se enfim do policial clássico que, segundo Todorov, “não transgride as regras do gênero”. Nele, o narrador conta a posteriori as peripécias da trama e o êxito do amigo: é o caso do Dr. Watson que é o narrador “oficial” das proezas dedutivas de Sherlock Holmes.
Existe ainda o roman noir, da década de trinta, que se diferencia por fazer coincidir os crimes e as perversões durante a trama, colocando-se no presente da narração e obrigando o detetive a seguir os passos do(s) criminoso(s), através de uma intensa ação. Neste caso, muitas vezes o que está em jogo é menos o poder analítico-policialesco e mais a dosagem de valentia daquele que enfrenta o perigo e dá o xeque-mate no transgressor.
Em Xangô de Baker Street não há um narrador presentificado como nos livros de Conan Doyle, nos quais o Dr. Watson imortaliza as façanhas do amigo. A narração se faz por ela mesma, através da ação e do desempenho dos personagens. Cria-se, assim, a “ilusão da realidade” que é um dos princípios do romance realista tradicional, sem a presença ostensiva do narrador. A prosa é elegante, condizente com o vocabulário da nossa corte no século XIX, na qual o Imperador é um ilustrado adepto do liberalismo francês, fala corretamente duas ou três línguas e cria ao seu redor uma provinciana corte afrancesada. Os momentos em que sobressaem este provincianismo são tratados com uma fina ironia pelo autor. Numa passagem em que o delegado Mello Pimenta pergunta a Sarah Bernhardt se ela concorda ou não com a mudança do Império para a República, a atriz responde com arte e astúcia (o savoir faire dos franceses) : “- Je ne me mêle pas de ses affaires...”, o que foi traduzido por um dos elegantes rapazes da sociedade: “Ela viu o Mello com seis alferes.” (Xangô, p. 26)
Outros indícios de fina ironia crítica a respeito da subserviência aos modelos europeus são apontados no espírito macaqueador da sociedade brasileira naquilo que há de mais superficial e provinciano. Há um momento em que Coelho Neto pergunta ao detetive o que ele está achando do Brasil. Pergunta clássica de entrevistador de televisão a que o detetive também responde em resposta equivalente:
“- Um lugar fascinante, realmente fascinante. Estou encantado com os costumes da terra. O povo é extremamente cordial. Sinto-me à vontade, como se estivesse em casa. Há algo, todavia, que não entendo - completou Sherlock, perplexo.” Instado a responder, ele diz que não compreende o fato de os homens se vestirem à européia, num país tropical. (Xangô, p. 174) Em seguida, A baronesa de Avaré responde: “- O senhor Holmes há de nos perdoar, mas a civilização tem seu preço. Il faut souffrir pour être beau...” Civilizadamente, também, Sherlock compreende “a lógica” do imperativo civilizador, mas decide mandar fazer roupas de linho branco para seu conforto, apesar de ser alertado pelos circunstantes de que o uso do tal tecido era coisa do “zé-povinho”.
Outro fato interessante é o dado de o detetive falar a nossa língua, com sotaque aportuguesado, aprendida numa de suas andanças por colônias portuguesas de além-mar. Para a funcionalidade do romance este dado é essencial pois facilita suas investigações e possibilita a desenvoltura com que ele se adapta às “excentricidades” tropicais. Dr. Watson, ao contrário, necessitando de intérprete, e torcendo o nariz aos nossos costumes, cai em situações ridículas, como, por exemplo, as circunstâncias em que ele “inventa” o uso da caipirinha. E exatamente é ele que incorpora a pomba-gira, num terreiro de xangô, cujo pai de santo tinha sido solicitado por suas entidades para desvendar o mistério dos assassinatos e descobrir o assassino, que em língua Nagô é chamado de Oluparun - o destruidor.
As pistas são dadas pela entidade debochada, e, mais uma vez, Sherlock não consegue montar o enigma, obnubilado que estava pelos encantos da terra e, particularmente, pela paixão que sentia por uma artista mulata - a Ana Candelária. Em decorrência de seu romance com a brasileira, seus poderes dedutivos ainda se tornam mais frágeis ao trocar o costumeiro uso da cocaína pelos prazeres mais sensuais da cannabis sativa.
Como foi falado anteriormente, a narração se faz por si mesma com o distanciamento do narrador. No entanto, o autor introduz um corte nesta linearidade ao trazer o assassino em cena. Nos momentos anteriores a cada crime, a disposição gráfica do livro muda o registro para o itálico e o discurso transforma-se em monólogo interior do perigoso psicopata: o tom é íntimo, psicológico, diferente, portanto, do registro realista da narração como um todo. Ao completar seu quarto crime, cuja vítima é aquela visada desde o primeiro momento por sua mente deformada, ele simplesmente sai à francesa, embarcando no mesmo navio em que um Sherlock, frustrado, volta a Londres. Daí o inusitado do romance, que à primeira vista poderia ser policial, mas que conserva o enigma dentro da ação e da trama quase até o fim , insinuando, inclusive, que o assassino continua agindo em Londres, na pele de Jack, o estripador, também feito através de recursos gráficos como uma nota no The Star e no The Times.
Tratando-se de uma leitura comentada, tentei trazer algumas informações sobre a estrutura do romance, mas sem maiores pretensões de uma análise em profundidade. Também não sei se seria o caso. Detalhes ricos não foram explorados, como por exemplo as deliciosas descrições do Rio antigo, fiéis às pesquisas feitas por Jô Soares, que - outra surpresa - no fim do livro expõe uma ampla bibliografia, fato inédito em termos de ficção, até onde conheço.

A Lírica, a Modernização e a Modernidade

O impasse criado para a lírica, após a palavra de ordem dos românticos que se insurgiram contra a norma clássica, veio conferir-lhe estatutos polêmicos e polarizações que se agravaram a partir do século XIX. Impasse que atingiu seu ápice com a consolidação da sociedade burguesa, criadora e criatura de uma nova ordem de valores. Aprofundados pelo avanço do capital e da técnica, eles engendram novos meios de produção e, portanto, novas relações sociais mais dinâmicas e contraditórias.
Fenômenos como a multidão, o anonimato e a máquina, gerando a procissão da pressa e da automação, causaram o primeiro impacto nos poetas do século XIX. Baudelaire foi o primeiro a receber os “chocs” dessa mudança e transformá-los em produto lírico nos Tableaux parisiens. A consciência da crise requeria também uma mudança total da lírica que fosse, ao mesmo tempo e contraditoriamente, aceitação e recusa à nova ordem outorgada. Walter Benjamin, ao analisar o contexto das últimas décadas do século XIX e início do século XX, define a posição desses intelectuais como “uma desilusão radical com o século e ao mesmo tempo uma total fidelidade a esse século.”
A lírica anterior à estética romântica tinha como uma das características a consonância entre o mundo e o sujeito lírico, num contexto ainda não sujeito a grandes transformações. O poeta lírico era, por assim dizer, o menestrel de seu tempo. Poeta e leitor comungavam juntos de um mundo razoavelmente ordenado e orientado pela filosofia iluminista, sem os ajustes e/ou desajustes que a técnica moderna iria lhes impor. O prenúncio dos estertores dessa lírica já aparece no romance de Balzac, onde o autor de A comédia humana, fez do protagonista Luciano, de As ilusões perdidas o lírico dissonante entre a decadência aristocrática e a ascendência burguesa. O romantismo emite os primeiros sinais desse desconforto, que é caracterizado como um duplo movimento da revolta e do ”sol negro da melancolia”, segunda a definição do poeta Gérard Nerval. Ao analisar os fundamentos dessa revolta, assim dizem os autores de Revolta e melancolia:
"Acontece que, para os românticos, o verdadeiro núcleo do valor continua sendo a união com os homens e o universo natural.
Ora, convém observar que essa dupla exigência se define precisamente em oposição ao status quo instaurado pelo capitalismo. O princípio capitalista de exploração da Natureza está em contradição com a aspiração romântica em viver de forma harmoniosa em seu âmago. E o desejo de recriar a comunidade humana - encarada sob múltiplas formas: pela comunicação autêntica com outrem; pela participação no conjunto orgânico de um de um povo e no seu imaginário coletivo manifestado através de mitologias e folclores; pela harmonia social ou uma sociedade sem classes - é a contrapartida da recusa da fragmentação da coletividade na modernidade. Portanto, a crítica desta e os valores positivos constituem apenas os dois lados de uma só moeda."


Mas já no século XVIII os poetas ingleses prenunciam em seus poemas a intrusão industrial na natureza. A implantação da indústria na Inglaterra modifica a paisagem inglesa e motiva o aproveitamento do dejeto industrial como se pode ver nestes versos de Wordsworth:

“...the smoke of unremitting fires
Hangs permanent, and plentiful as wreaths
Of vapor glittering is the morning sun.”


Em Baudelaire, essa melancolia escapa destes versos de Chant d’automne:


"Bientôt nos plongerons dans les froids tenèbres;
Adieu, vive clarté de nos étes trop cours!
J’entends dejá tomber avec de chocs funèbres
Le bois retentissant sur le pavé des cours."

Ou ainda na melancolia sutilmente irônica destes versos do poema Paysage:
"Il est doux, à travers les brummes, de voir naitre/
L’étoile dans l’azur, la lampe à la fenêtre.
Les fleuves de charbon monter au firmament
Et la lune verser son pâle enchantement. "


Com o descompasso criado entre a emergência e a urgência da modernização, o poeta lírico voltou o olhar sobre si mesmo e se viu à margem de uma sociedade voltada agora, e mais do que nunca, para o utilitarismo. A poesia, como bem simbólico, não poderia nem deveria competir nesse mercado. Como e onde vai se enquadrar a lírica? Que espaço se lhe sobraria?
A resposta virá através da resistência, em que ela “abrirá caminho caminhando”. Sobre a resistência da poesia moderna, Alfredo Bosi diz que:

"A modernidade se dá como recusa e ilhamento. [...] A resistência tem muitas faces. Ora propõe a recuperação do sentido comunitário perdido (poesia mítica, poesia da natureza); ora a melodia dos afetos em plena defensiva (lirismo de confissão, que data, pelo menos, da prosa ardente de Rousseau) ; ora a crítica direta ou velada da desordem estabelecida (vertente da sátira, da paródia,, do epos revolucionário, da utopia). [...] Nostalgia, crítica ou utópica, a poesia moderna abriu caminho caminhando."


A nova poesia tem como características a crise do verso, a dissonância formal, a despersonalização, entre outras. Diz Hugo Friedrich:

"Com Baudelaire começa a despersonalização da lírica moderna, pelo menos no sentido que a palavra lírica já não nasce da unidade da poesia e da pessoa empírica, como haviam pretendido os românticos, em contrate com a lírica de muitos séculos anteriores. [...] Os poetas sempre souberam que a aflição se dissolve no canto. É o conhecimento da catarse do sofrimento mediante sua transformação em linguagem formal mais elevada. Mas apenas no século XIX, quando o sofrimento com finalidade passou a sofrimento sem finalidade, à desolação e, por fim, ao niilismo, as formas tornaram-se tão imperiosamente, a salvação - conquanto fechadas em si e repousantes - entrando em dissonância fundamental na poesia moderna."

A despersonalização da poesia moderna se manifesta com o poeta criando o distanciamento da lírica mais ao lado da inspiração ou da intensa subjetividade, que era uma das características do poeta romântico: o Eu-lírico era intensamente projetado. Vale a pena conferir o sentido desta despersonalização nas palavras de Hugo Friedrich:

"Fora da França, Poe foi quem separou, de modo mais resoluto, um do outro lírica e o coração. desejou como sujeito da lírica uma excitação entusiástica mas que esta nada tivesse a ver com paixão pessoal nem com the intexication of the heart ( a embriaguez do coração). Entende, por excitação entusiástica, uma disposição ampla, chama-a de alma, em verdade só para dar-lhe um nome, porém acrescenta cada vez: ‘não coração’. Baudelaire repete as palavras de Poe quase ao pé da letra, variando-as com formulações próprias: ‘A capacidade de sentir do coração não convém ao trabalho poético’, em oposição à ‘capacidade de sentir da fantasia’. Há de se considerar que Baudelaire concebe a fantasia como uma elaboração guiada pelo intelecto... Esta concepção lança luz necessária sobre as palvras citadas há pouco. Estas exigem que se prescinda de todo o sentimentalismo pessoal a favor de uma fantasia clarividente ... [...] Em uma carta, ele fala da ‘intencionada impessoalidade de minhas poesias’, com o que se entende que elas podem podem expressar qualquer possível estado de consciência do homem, com preferência os mais extremos. ‘Lágrimas? Sim, mas aquelas que não vêm do coração’. Baudelaire justifica a poesia em sua capacidade de neutralizar o coração pessoal. Isto acontece de maneira ainda tateante, muitas vezes encoberto debaixo de concepções mais antigas, Mas ocorre de tal modo que se pode conhecer o futuro passo da neutralização da pessoa para a desumanização do sujeito lírico como uma necessidade histórica. De qual quer forma, contém aquela despersonalização que, mais tarde, será explicada por T. S. Eliot e outros como pressuposto para a exatidão e a validade do poetar.
Quase todas as poesia de Les Fleurs du mal falam a partir do eu, Baudelaire é um homem curvado sobre si mesmo. Todavia este homem voltado para si mesmo, quando compões poesias, mal olha para seu eu empírico. Ele fala em seus versos de si mesmo, na medida em que se sabe vítima da modernidade. Esta pesa sobre ele como uma excomunhão. Baudelaire disse com bastante freqüência, que seu sofrimento não era apenas seu. [...] Ele nunca teria feito versos como, por exemplo, os de Victor Hugo sobre a morte de uma criança. Com uma solidez metódica e tenaz mede em si mesmo todas as fases que surgem sobre a coação da modernidade: a angústia, a impossibilidade de evasão, o ruir frente à idealidade ardentemente querida, mas que se recolhe ao vazio. Estes são os sintomas da civilização moderna, como acentua Baudelaire, perigos dos quais ele próprio tem de precaver-se."


Dessa maneira, é que vemos chegar o fim do século XX, com a lírica posta em meio dos mesmos impasses, das mesmas polêmicas e polarizações. Ao contrário da épica que foi absorvida pelo romance e, portanto, bem contextualizada pela relação (im)pessoal, a lírica padece do mal incurável de ser Eu sendo Nós, ou seja: um Eu que forçosamente expressa a voz da comunidade. Octavio Paz, poeta e crítico literário, nascido no México, diz a respeito da criação do poema:

"As palavras do poeta são também as palavras de sua comunidade. Do contrário não seriam palavras. Toda palavra implica dois elementos: o que fala e o que ouve. O universo verbal do poema não é feito dos vocábulos do dicionário, mas dos vocábulos da comunidade. O poeta não é um homem rico em palavras mortas, mas em vozes vivas."


E Paul Valéry, o grande poeta francês, que sucedeu a Baudelaire, assim se expressa a respeito da criação lírica:

"Considerem também que, entre todas as artes, a nossa é talvez a que coordena o máximo de partes ou de fatores independentes: o som, o sentido, o real e o imaginário, a lógica e a sintaxe e a dupla invenção do conteúdo e da forma... e tudo isso por intermédio desse meio essencialmente prático, perpetuamente alterado, profanado, desempenhando todos os ofícios, a linguagem comum, da qual devemos tirar uma voz pura, ideal, capaz de comunicar sem fraquezas, sem aparente esforço, sem atentado ao ouvido e sem romper a esfera instantânea do universo poético, uma idéia de algum eu maravilhosamente superior a Mim."


2. E AGORA JOSÉ?


As considerações acima, trazidas para a Modernidade brasileira, podem ser percebidas nos poemas dos nossos melhores poetas modernistas, entre eles o mineiro Carlos Drummond de Andrade. Estreando em 1930 com o livro Alguma poesia (embora já viesse publicando em jornais de Minas Gerais, contemporaneamente aos modernistas de São Paulo), Drummond já pertence a uma tradição consolidada em termos de poesia moderna no país. Seus poemas abrigam algumas das características apontadas por Hugo Friedrich na lírica contemporânea: despersonalização do sujeito lírico, dissonância na forma, idealidade vazia (fim da utopia), desenraízamento do homem (a solidão moderna), fragmentação das relações humanas, entre outras. O poema José, que dá nome ao seu quarto livro publicado, pode servir de exemplo dessas características, através das escolhas formais do poeta.

JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você moresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua,
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?


A despersonalização que se evidencia pelo “distanciamento” do sujeito lírico, cuja voz já não se alimenta de puras emoções individuais, presentifica-se neste poema pela presumível interlocução entre o Eu-lírico e um interlocutor anônimo. Na verdade, a interlocução é “forjada” pela construção do poema que se apoia, do começo ao fim, numa interrogação. Ao transferir para o “José” suas próprias inquietações, o sujeito lírico consegue esse “distanciamento” que é uma das características da poesia moderna. Torna, assim, o discurso lírico mais tenso e despersonalizado, ao mesmo tempo em que envolve o leitor na cumplicidade de suas angústias. No primeiro poema de Fleurs du mal, Baudelaire, referindo-se ao tédio (spleen) que assola a vida moderna, enuncia nesta estrofe final do poema Au lecteur o fundamento dessa cumplicidade:

"C’est l’Énnui! - l’oeil chargé d’un pleur involontaire,
Il rêve d’échafauds en fumant Son houka
Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat,
- Hypocrite lecteur, - mon semblable, - mon frère!"
(grifos meus)

"É o Tédio - o olhar esquivo à mínima emoção,
Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.
Tu conheces, leitor, o monstro delicado
- Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!"

(Tradução de Ivan Junqueira)



No poema de Drummond, o tédio, o desapontamento, e o fim da utopia vão sendo paulatinamente construídos. O tempo presente, que é configurado na enunciação através do advérbio agora e de alguns verbos no presente (“você que faz versos,/ que ama, protesta/ Está sem mulher,/está sem discurso, está sem carinho,”), tem como conseqüência um passado finito que o poeta representa através dos verbos no pretério perfeito do indicativo: “A festa acabou,/a luz apagou,/o povo sumiu,/ a noite esfriou,”. Diz respeito a uma situação metafórica que enfeixa o drama existencial da modernidade, cujas relações impessoais se concretizam no verso: “você que é sem nome,”.
À medida em que o poema evolui e que se esgotam as alternativas existênciais enumeradas pelo poeta, a penultima estrofe é construída sob o recurso de uma condicionalidade improvável, apontando para o impasse e o desfecho, com os verbos empregados no mais que perfeito do subjuntivo : “Se você gritasse,/se você gemesse,/ se você tocasse a valsa vienense,”... Dessa maneira, presente/ passado agônicos e um futuro improvável e precário são os suportes formais, entre outros, que evidenciam as indagações do sujeito lírico.
Outro recurso formal de que se serve o poeta é o uso da anáfora em todas as estrofes. Tal recurso ajuda a manter o ritmo da redondilha menor (o pentassílabo) ao mesmo tempo em que dá ênfase às situações criadas no poema. Da mesma forma, o discurso poético usa e abusa do coloquial, beirando a referencialidade, (“já não pode beber,/ já não pode fumar,/ cuspir já não pode,”) não fosse pela ambigüidade de que se vale o poeta no uso das metáforas, ou seja, de uma linguagem que transpõe o real em busca de outras significações. É o caso dos versos: “Com a chave na mão/ quer abrir a porta,/não existe porta;/ quer morrer no mar,/ mas o mar secou; /que ir para Minas,/Minas não existe mais.”
A linguagem figurada destes versos instaura a disssonância, ou a incongruência do sentido da mensagem que normalmente norteia a linguagem comunicativa ou referencial. Sabemos, enquanto leitores, que o mar não seca e que Minas continua no mesmo lugar, mas a força poética da imagem torna o leitor cúmplice da situação conflitiva que permeia o poema, revelando-se como o drama existencial da vida moderna. Sozinho no escuro, José marcha, para onde?

Guimarães Rosa e o Conto da Experiência Moderna: A Terceira Margem

"A arte de narrar tende para o fim porque o lado épico da verdade, a sabedoria, está agonizando. Mas este é um processo que vem de longe. Nada seria mais tolo do que querer vislumbrar nele um ‘fenômeno de decadência’ – muito menos ainda ‘moderno’. Ele é antes uma manifestação secundária das forças produtivas seculares que aos poucos afastou a narrativa do âmbito do discurso vivo, ao mesmo tempo em que tornava palpável uma nova beleza naquilo que desaparecia." (Walter Benjamin)


No antológico texto de Walter Benjamin - O Narrador - sua análise se prende ao fim da narrativa tradicional (oral) aquela calcada na memória e na transmissão da experiência por seus narradores. O desaparecimento deste tipo de narração e de narradores está condicionado ao gradual desaparecimento da épica de tradição oral, à medida que “as forças produtivas seculares (...) afastaram a narrativa do âmbito do discurso vivo...” Em outras palavras, o fim gradativo das formas produtivas artesanais e a obsolescência do narrador como corrente transmissora da experiência viva, radicada na memória que passa de geração em geração, faz surgir uma outra espécie de narrador: o narrador moderno, o narrador da forma romanesca:

"O que separa o romance de todas as outras formas de criação literária em prosa - o conto de fada, a saga e até mesmo a novela – é o fato de não derivar da tradição oral, nem entrar para ela. Mas isso o distingue, sobretudo, da ação de narrar. O narrador colhe o que narra na experiência, própria ou relatada. E transforma outra vez em experiência dos que ouvem sua história. O romancista segregou-se. O local do surgimento do romance é o indivíduo em sua solidão, que já não consegue exprimir-se sobre seus interesses fundamentais, pois ele mesmo está desorientado e não sabe mais aconselhar."

As formas modernas dos romances e contos atestam à exaustão “a perda do sentido da vida” na maneira como se fragmentam, se enovelam, se auto-alimentam de suas próprias formas e recusam o ponto final, que seria “a moral da história”; história para sempre perdida em suas formas e em sua capacidade de memória viva.
Diz Walter Benjamin:

A memória é a capacidade épica por excelência. Só graças a uma memória abrangente pode a épica, por um lado, apropriar-se do curso das coisas e, por outro, fazer as pazes com o desaparecimento delas – com o poder da morte.


A TERCEIRA MARGEM

"Sou homem depois deste falimento? Sou o que não fui, o que vai ficar calado."

(Guimarães Rosa – A terceira margem do rio)


O conto “A terceira margem do rio” é um dos mais densos e poeticamente engendrados da nossa literatura. Em seis páginas apenas, Guimarães Rosa consegue prender o leitor pela intensidade da matéria narrada, pela perspectiva humana que transcende o mero relato da cor local e pela consciência da forma reduzida ao essencial; ou como disse Julio Cortazar a respeito da boa realização da forma narrativa: “... tão secreto e voltado para si mesmo, caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário [...] um bom conto é incisivo, mordente, sem tréguas desde as primeiras frases”.

"Nosso pai era um homem cumpridor, ordeiro positivo; e sendo assim desde mocinho e menino, pelo que testemunhavam as diversas pessoas sensatas, quando indaguei a informação. "

Assim começa a Terceira margem do rio, e desta citação temos as primeiras revelações formais para leitura que ora se inicia, tentando descobrir, na estrutura formal do texto – este ser de linguagem – o impasse do narrador moderno diante da impossibilidade de retransmitir a experiência dos narradores tradicionais. O narrador desta saga familiar é um ser anônimo e sozinho, que carece da informação para encontrar o sentido da vida, através de suas lembranças.
O romance, ou seja, ainda, a narrativa moderna é um fenômeno da sociedade burguesa, uma convenção da escrita oposta à tradição oral e, segundo Benjamin, uma decorrência histórica dos novos modos de produção, entre eles - a imprensa. Uma ficção assinada e datada por um indivíduo, por uma experiência particular, sem a presença viva das várias vozes que compõem a narrativa tradicional. É do declínio da autoridade dessa experiência e de sua impossibilidade no mundo fragmentado da modernidade que se pode acompanhar, na estrutura do conto de Guimarães Rosa, o impasse de um narrador da convenção escrita, submerso num mundo de características arcaicas, ambiguamente dilacerado entre a “voz” da experiência paterna (já intransmissível) e o mundo familiar e comunitário, dos quais ele participa quase à revelia.
O narrador deste conto, já entrado nos anos e inominado, narra a posteriore dos fatos e através de uma dupla perspectiva: da vivência e convivência de seu pai e da sua. Mesmo assim, começa por dizer que narra de uma dupla ótica: a própria e a de testemunhas. Podemos então inferir, pelas marcas textuais, que a narrativa se processa no limite do coletivo, respaldado na tradição oral (testemunho de pessoas sensatas) e do individual (subjetividade de quem narra), não prescindindo, portanto, nem da lembrança dos “narradores anônimos”, nem de sua visão/recordação solitária. Com isto, o conto de Rosa retoma formalmente um dos problemas cruciais da narrativa moderna, segundo Benjamin e Adorno: “narrar um mundo que carece de totalidade, mas que apesar de tudo exige ser narrado em suas dobras interiores”. E o que é mais: arrancando da matéria bruta dos nossos sertões – através da técnica do monólogo reflexivo, ou “interior” – a universalidade do extravio humano e de sua experiência do mundo moderno.
Inicia-se, desta maneira, o “relato” de um narrador de primeira pessoa, que, embora no centro dos acontecimentos, se mantém anônimo. Essa estratégia do foco narrativo possibilita simular uma distância “épica”, uma pseudo-objetividade, que se diria impossível de conviver com o “drama” familiar do relato. Podemos ver, assim, traços de uma forma tradicional de narrativa, convivendo (e contaminada) pela subjetividade do narrador... que agora é produto de um mundo moderno convivendo simultaneamente com estruturas arcaicas.
Portanto, o fio narrativo principia falando de um acontecimento fora de toda a normalidade que sustenta o cotidiano, o prosaico, e se aproxima do “maravilhoso”, do transcendente: um dia (era uma vez...) o pai mandou aprontar uma canoa especial, de pau vinhático,

"Pequena, mal com uma tabuinha na popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte e trinta anos." (ROSA, p.27, grifos meus.)

Silencioso, sem nenhuma explicação, embarca na canoa artesanal e ganha o rio para uma demanda sem resposta, em similaridade com aquele imenso caudal de água silenciosa.

"O rio por aí se estendendo fundo, calado pra sempre. Largo de não se poder ver a forma da outra beira". (ROSA, p. 27, grifos meus.)

Afronta a resistência da mulher que diz numa sentença progressiva: “Cê vai, ocê fique, você nunca volte”. (ROSA, p. 27, grifos do autor). Morfologicamente, a redução inicial do pronome de tratamento, a forma sincopada, é significativa, pois vai do mais íntimo – e familiar à região – ao formal (o pronome você no sentido de forma, pouco usado nesse contexto regional. Adquirindo um tom impositivo e perfilhando os sentimentos que dominam a mulher, inculca na subjetividade do significado a sentença condenatória.
Está formada a base estrutural do conto: uma “viagem” sem objetivo e sem volta, que transcende o real:

"Nosso pai nunca voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia." (ROSA, p. 28, grifos meus.)

Ora, se a narrativa oral se funda em relatos presumivelmente verídicos, abonados na experiência coletiva, o narrador da “terceira margem”, desnuda, no tecido ficcional, o estatuto da mimese aristotélica, ou seja: narrar ou representar o possível “segundo a necessidade e a verossimilhança.” (Aquilo que não havia, acontecia). A esta altura, já sabemos que a narrativa moderna se funda na convenção da escrita, na convenção de um autor-narrador duplamente solitário e, enfim, de um leitor ensimesmado, cuja experiência fica circunscrita à sua leitura. Hypocrite lecteur, -, mon semblable, mon frère! Assim diz Baudelaire referindo-se ao novo leitor da modernidade.
Do ponto de vista da narrativa, o relato se configura como um grande monólogo interior que perfaz o fio da meada, ou ainda como “um monólogo infinito” segundo a expressão de Antonio Candido, referindo-se a Grande sertão: veredas, que “teria uma influência decisiva sobre a ficção posterior.”
O tecido ficcional, a trama propriamente dita, se inunda da permanente presença do narrador em busca de respostas que transcendam o meio contingente e prosaico, reforçando a demanda interior do indivíduo em meio ao tecido social. Assim se procede a relação entre o narrador e o pai, através da cumplicidade e da ambigüidade do primeiro. É o filho que alimenta a “doidera” do pai, colocando comida, às escondidas, nos ocos de pedra dos barrancos à margem do rio. Uma relação que toma a vida inteira do narrador (em similaridade com a “estranheza” do pai) sempre a “espiar” seu vai-e-vem , que não se via aportar em nenhuma das margens.
Neste ponto, a experiência paterna, que na narrativa tradicional se daria de maneira espontânea e através da presença física do narrador, transfere-se para o terreno do imaginário, da lembrança mediada pela escrita, reforçando a idéia de que, na modernidade, a experiência dos antepassados é já finita e sua presença se dá apenas como ficção.

"Mas, por afeto mesmo, sempre que às vezes me louvavam por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: - ‘foi pai que um dia me ensinou a fazer assim... ’ o que não era certo, exato, mas que era mentira por verdade." (ROSA, p. 30, primeiros grifos do autor e segundos meus.)

Impossível, no mundo contemporâneo, a lição épica dos narradores antigos tem sua contrapartida no isolamento e na subjetividade do narrador moderno; abolindo o empirismo das situações e ações, aloja-se agora no inconsciente dos personagens, na sua essência, na sua perplexidade, nos seus malogros e nas suas buscas interiores em relação ao mundo exterior. Neste sentido, o narrador do conto, situando-se no limite entre o arcaico e o moderno, transpõe para o entrecho narrativo a impossibilidade da tradição e a possibilidade da ruptura. Aloja em si a angústia de não conseguir trilhar o caminho indicado pelo pai, angústia que se refaz em indagações e sentimento de culpa. Ele é o parceiro solitário, ou a face moderna do pai, ou ainda a terceira margem de um rio, que tem duas margens lógicas e uma outra que é fabricada por palavras, ou seja: por sua narrativa.
Como já se abordou no início, essa “distância épica” faz com que o sujeito da enunciação suprima os nomes próprios, seu e dos familiares. É o narrador que assume, através do uso do possessivo, os vínculos com a família, que desta forma se tornam tênues, levando o drama do relato a ser percebida através de sua visão interiorizada dos fatos.

"Minha irmã se mudou com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no vagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu não podia querer me casar. Eu permaneci com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei – na vagação, no rio, no ermo – sem dar razão de seu feito." (ROSA, p. 30.)

A demanda do narrador se frustra na impossibilidade de resposta para o feito do pai, a explicação é interditada na própria narrativa:

"Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora o homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada, mais." (ROSA, p.31, grifos meus)

Deste modo, a pista para a resposta à sua demanda vem revestida pela indeterminação, - o disse-me-disse que andava de boca em boca da comunidade. A “morte do pai” já se anuncia através do esquecimento dos conhecidos e a recordação existe apenas para o narrador, no próprio ato de narrar:

"Sou um homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta culpa? Se meu pai sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio pondo perpétuo. Eu sofria já o começo da velhice – esta vida era só desmoronamento." (ROSA, p. 31)

O clímax da narrativa, seu momento crucial subverte a expectativa dessa longa vigília. Na tentativa de resolver o impasse – no limite em que se colocara – o narrador resolve tomar o lugar do pai na perpétua canoa: ou seja, resolve-se metaforicamente pela narrativa ancestral, plasmada na figura da viagem sem volta:

"Chamei umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz – Pai, o senhor está velho, já fez seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa ”... E assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo." (ROSA, pp. 31/2, grifos do autor))

No desenlace, assiste-se à impotência do narrador diante do gesto de assentimento do pai:

"Eu tremi profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... [...] Porquanto ele me pareceu vir: da parte do além." (ROSA, op. cit., p.32, grifos meus)

E finalmente, a impossibilidade final de a narração reconstruir a forma de um mundo finito:

"Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem depois desse falimento? Sou o que não fui, o que vai ficar calado."(ROSA, op. cit., p. 32, grifos meus.)

Assim, o desfecho do conto é testemunho de uma arte que não pode mais narrar o “real” na plenitude de antigamente. Por isso, o narrador recua de sua pretensão, ou do seu gesto, no quase final do conto e assume a ruptura como transcendência estética transformando a continuidade da experiência numa epopéia às avessas, ou numa “epopéia negativa”, no dizer de Adorno, na qual o herói, deixando a conquista do mundo exterior, radica no interior a riqueza da experiência: “Sou homem depois desse falimento? Sou o que não fui, o que vai ficar calado.” O silêncio do narrador, seu “falimento” é o momento crucial do romance moderno, mentor de sua temporalidade histórica. Por isso, o fim deste narrador será tão anônimo como foi a sua vida, mesmo referendando seu último desejo - tomar o “lugar” do pai - depois de morto. Do pai, sabe-se que “sumiu”, desapareceu sua aventura arcaica, sem artigo de morte, mas o filho terá um duplo silêncio: em vida e na morte humana, natural, sem sortilégios, como convém ao mundo moderno:

"Mas, então, ao menos, que, artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio." (ROSA, p. 32, grifos meus.)

É uma constante em Guimarães Rosa a técnica do monólogo e do relato como a representação das grandes indagações do ser humano face à sua contemporaneidade. No conto “O espelho” – constante em Primeiras estórias - o narrador inicia um “falso” diálogo com um interlocutor ilustrado, mas não presentificado: “Se quer seguir-me, narro-lhe não uma aventura, mas uma experiência, a que me induziram, alternadamente, uma série de raciocínio e intuições.”(grifos meus)
De igual forma processa-se o drama fáustico de Riobaldo em Grande sertão: veredas. Um longo monólogo sob a forma de um presumível diálogo, um grande relato no qual a experiência do narrador não é mais transmissível, porque feita de dúvidas, de hesitações, dialeticamente temporal como a história dos homens: “Existe é homem humano. Travessia.”
Portento, não se trata mais, no conto de Guimarães Rosa de comunicar uma experiência comunicável, mas uma vivência individual que passa a ser a única experiência possível no mundo moderno, ditada pela impossibilidade da partilha. Não é por acaso que o conto chama atenção por seu final inusitado. Essa demanda sem resposta, sem acabamento final, em que se ressalta a incomunicabilidade entre o pai e o filho, quando aquele se esvai em cumplicidade com o rio (se) pondo perpétuo.

Considerações Sobre Capitu de Machado

Sobre o romancista, sua obra e sua crítica.

Em 1899, Machado de Assis publicou o romance Dom Casmurro, o último de sua famosa trilogia que inclui Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1891), os mais comentados de sua vasta obra composta dos romances da 1a fase, de seus contos, crônicas, teatro, além de uma obra poética de forma parnasiana que não teve a mesma ressonância de suas narrativas.
A essa altura seu reconhecimento como um grande ficcionista já tinha ultrapassado as primeiras e apressadas críticas, feitas principalmente por Sílvio Romero. Mesmo assim, durante muito tempo a crítica especializada não conseguia penetrar nas artimanhas engendradas por seus narradores e pelo móvel narrativo encoberto no enredo, discutindo apenas a camada mais aparente, tornando ingênua a leitura de seus romances, leitura mais das vezes equivocada; distante, portanto, da sagacidade com que Machado de Assis criava suas tramas ficcionais.
Foi Lúcia Miguel Pereira, crítica atuante no Rio de Janeiro, quem publicou em 1950 a primeira crítica favorável ao romancista, baseada nos aspectos estruturais do livro (fatores estéticos).

"O desajustamento entre Machado e os escritores do seu tempo provém, afinal, tanto da sua intrínseca superioridade como do fato de haver ele seguido o ritmo da vida política e social das classes dominantes, enquanto os outros se atrasavam, perdidos na busca do elemento típico. (...) Por isso é que Machado de Assis se pode chamar de realista. Sem preocupação de escola literária desde que se libertou do romantismo, ele observou, como ninguém entre nós, as criaturas em toda a sua realidade, dando a cada aspecto o justo valor, isto é, apreciando a todos com o critério relativo."
(Lúcia Miguel Pereira, op. cit, pp. 68/66)


O próprio Machado fez crítica literária em jornais cariocas. Em um texto chamado “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, ele observa a tendência de sua época pelo romântico tratamento da cor local; contrário a essa tendência estética, ele coloca o instinto de nacionalidade dentro de uma linguagem mais universalmente contemporânea, deixando as pistas para seus futuros críticos, como Lúcia Miguel Pereira:

"Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. (Sobre os romances). (...) o romance brasileiro, não menos o está (distante) de tendências políticas e geralmente de todas as questões sociais – o que não digo por elogio, nem ainda censura, mas unicamente para atestar o fato. Esta casta de obras conserva-se aqui no puro domínio de imaginação, desinteressada dos problemas do dia e do século, alheia às crises sociais e filosóficas. "

É justamente a escolha dos personagens pertencentes à burguesia agrária, já vinculada ao elemento urbano da capital do país, bem como os conflitos psicológicos que dão densidade a essas personagens (em especial a Capitu) que fazem da literatura de Machado de Assis um diferencial em relação a seu tempo. Os equívocos dos críticos anteriores a Lúcia Miguel Pereira durante muito tempo fizeram do personagem Dom Casmurro (ou Bento Santiago) a vítima das manhas de Capitu, terminando por constatar a infidelidade da protagonista feminina, sem direito à apelação. Só a partir da década de sessenta foi que surgiram as mais incisivas e aprofundadas críticas literárias sobre a ambigüidade discursiva do narrador e da estrutura narrativa de Dom Casmurro, através dos críticos Silviano Santiago, John Gledson e Roberto Schwarz. Como observa Silviano Santiago:

" Em resumo: os críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre Capitu, ou sobre a impossibilidade de se ter a verdade sobre Capitu, quando a única verdade a ser buscada é a de Dom Casmurro."
(Silviano Santiago, op. cit., p. 32.)

E John Gledson afirma:

"Seja qual for a “verdade” acerca do adultério, podemos considerar que o romance é um estudo sobre o ciúme de Bento e as condições que o produzem. Tais condições são, com efeito, idênticas àquelas que fizeram com que o casamento se realizasse. A fim de se casar com Bento, Capitu precisa manipulá-lo e dominá-lo, procedimento que, invertendo os papéis tradicionais do homem e da mulher, provoca ciúme e ressentimentos. Do ponto de vista psicológico, Bentinho é apenas um menino mimado, habituado a que lhe façam as vontades, e possui a incapacidade da criança mimada para compreender que os outros têm uma existência independentemente da sua, de modo que quando eles afirmam a independência, com é natural na ordem das coisas, essa afirmação lhe parece uma traição."
(John Gledson, op. cit., p. 12)

O ciúme de Bento e seu empenho em cercear a liberdade de Capitu é afirmado pelo próprio narrador:

"Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo tão cioso dela, não continuei a sê-lo apesar do filho e dos anos. Sim, senhor, continuei. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer; muita vez só a indiferença bastava. Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror e desconfiança."

"Daí em diante foi cada vez mais doce comigo; não me ia esperar à janela, para não espertar-me os ciúmes, mas quando eu subia via no alto da escada, entre as grades da cancela, a cara deliciosa da minha amiga e esposa, risonha como toda nossa infância. "
(Dom Casmurro, vol. , respectivamente caps.CXIII. e CXV.)


A partir de então, tem-se deixado de lado a crítica impressionista (baseada apenas na impressão do crítico-leitor sobre a obra), e se fixado na estrutura dos romances, com destaque para o foco narrativo e para a configuração dos personagens.

2. O narrador em Dom Casmurro.

Um dos trunfos de Machado de Assis para armar a trama do romance e mostrar a ambigüidade das ações humanas, ou sua psicologia, é justamente a escolha de um narrador de 1a pessoa e o uso do flash back, ou narração retrospectiva, usada pelo narrador-protagonista. Bento Santiago é o “dono da voz” e narra a posteriore seus amores de adolescência, finalizando por seu casamento com Capitu até o desenlace final. O narrador machadiano conduz o plano narrativo, daí ser providencial a “escolha” do romancista pelo viés da memória e pela voz do narrador de 1a pessoa, transmitindo a verossimilhança necessária (aparência de verdade) aos propósitos do narrador-protagonista que divide a cena com Capitu, uma vez que a voz dela é suprimida.
O narrador começa por explicar o título do livro, carregando na ironia a respeito de um companheiro de viagem que o importunava com uma conversa desinteressante e a leitura de versos seus. O rapaz terminou por apelidá-lo de Dom Casmurro, título irônico que ele acata com complacência e irônica superioridade.

"Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão.
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra que desapareceu. (...) O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência."
(Dom Casmurro, volume I, cap.II)

É interessante notar que as reminiscências de Bento Santiago, quando narra sua infância e seu relacionamento com Capitu, são organizadas pelo discurso de um bacharel em direito e ex-seminarista, homem instruído e culto, com uma bagagem intelectual que vai da citação dos clássicos da literatura universal, de Homero a Shakespeare, dos filósofos às citações bíblicas. Um tal discurso se apóia numa retórica bacharelesca, sinuosa e muito ambígua que transfere para os outros personagens critérios de valor que ele pretende inculcar no leitor, principalmente em relação a Capitu.
É através do agregado José Dias que vem a primeira “denúncia” sobre o perigo da má influência da personagem feminina. Bentinho ouve “atrás da porta” as insinuações do agregado. Defendendo a promessa de D. Glória de tornar o filho padre e exaltando o poder da Igreja Católica que “tem grande papel no Brasil”, José Dias lança a primeira semente contra Capitu.

"- Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido aos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.
- Não acho. Metidos nos cantos?
- É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase não sai de lá. A pequena é uma desmiolada;"
(Dom Casmurro, vol I, cap. III).

"Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, ‘olhos de cigana oblíqua e dissimulada’. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia e queria ver se se podiam chamar assim."
(Dom Casmurro, vol. I, cap. XXXII)

O discurso do narrador pode ser visto sob dois desdobramentos: em primeiro lugar ele “descobre” seu interesse por Capitu através de outros olhos, o que reforça a sua imagem de ingenuidade e boa fé. Depois, o julgamento das manobras de Capitu, da adolescência até o casamento, também é visto através do juízo de valor de outros personagens, a exemplo do agregado e da prima Justina. A linguagem dos olhos é também interessante de constatar: ora são os personagens que “vêem” Capitu, ora é Bentinho que batiza a amiguinha de “olhos de ressaca”, numa das mais belas e poéticas páginas sobre a beleza e o poder de Capitu. (capítulo acima). Ou ainda quando os olhos do narrador adulto “vêem” os olhos da mulher fixando o cadáver de Escobar, como se fosse os da viúva.
Enquanto vai tirando da memória uma série de justificativas que “coincidentemente” reforçam a imagem negativa de Capitu, Dom Casmurro vai se narrando, “ingenuamente”, como uma criatura dócil, tímida, insegura e fácil de se influenciar. É assim quando ele precisa do apoio de José Dias e das articulações de Capitu para não ingressar no Seminário. Ou ainda quando infantilmente sonha em invocar o poder do Imperador para livrá-lo da vida religiosa.
Um dos pontos altos do narrador é a função apelativa, aquela função da linguagem em que em que o autor da mensagem se dirige diretamente ao leitor, trazendo-o para dentro do texto, tornando-o cúmplice do narrador:

"Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolino, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não nos adiantemos; vamos à primeira parte, em que vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou."
(Dom Casmurro, vol I cap. X)


"A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos o abismo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo."
(Dom Casmurro, vol I, cap. CXIX)

Por tudo o que dissemos acima, não resta dúvidas de que Machado de Assis elaborou um narrador enganoso ou sedutor para tornar ambígua a trama romanesca, seja através da reminiscência de memória, que quase sempre é enganosa ou desfocada, seja através da linguagem sinuosa e das interferências do narrador que torna o leitor cúmplice de seus desejos mais íntimos, como o desejo de justificar seus ciúmes e suas atitudes em relação a Capitu e ao filho Ezequiel. É justamente sua habilidade como romancista que o faz ser considerado o maior escritor brasileiro, cuja literatura permanece sempre atual e reconhecida pelo público de outros países.

" Machado foi sem dúvida um “mestre”, como quer o título de um dos livros de critica (Roberto Schwarz, “A Master on the Periphery of Capitalisme”) um dos grandes escritores de todo o mundo. (...) Em 1990, apresentando uma nova edição das “Memórias Póstumas”, Susan Sontag se dizia ‘espantada ao ver que um escritor dessa grandeza ainda não ocupa o lugar que lhe cabe."
3. O enredo

O tema da infidelidade ou do triângulo amoroso é muito antigo na literatura e na história da cultura universal; portanto, quando levado para o âmbito da literatura, se não for muito bem trabalhado, pode se tornar um clichê, ou seja, a banalização do assunto, como muitas vezes é empregado pela mídia das novelas televisivas. Na literatura ocidental podemos ver exemplos em dois romances célebres: Madame Bovary de Gustave Flaubert, e O primo Basílio de Eça de Queiroz. Trata-se de enredos que envolvem infidelidades conjugais explícitas, cujos narradores de 3a pessoa são oniscientes, ou seja, sabem e narram tudo a respeito do comportamento de seus personagens de modo a não restarem dúvidas sobre seus atos. É assim com o drama dos adultérios da romântica Ema Bovary, como também da Luísa de Eça de Queiroz que cai nos braços do primo Basílio na ausência do marido. Se a trama dos dois romances realistas se assemelha à trama de Dom Casmurro, um fator formal os separa: narrando na 1a pessoa, Bento Santiago se vale de suposições, muitas delas inconfiáveis, para determinar a infidelidade de Capitu e desterrá-la até a morte, sem provas evidentes. A oscilação e a dubiedade do narrador, também chamado “inconfiável” por Roberto Schwarz e John Gledson, dão a nota moderna do romance e sua contemporaneidade acima do espaço e do tempo em que foi escrito: a corte fluminense e o século XIX.
Bento de Albuquerque Santiago é filho abastado da burguesia urbana do Rio de Janeiro, capital do Império, cujos bens provinham das relações escravistas que sustentavam a parcela dominante da oligarquia brasileira. Bento poderia dizer como Brás Cubas outro memorialista abonado que “teve a boa fortuna de não comprar o pão com o suor de seu rosto”.

"Minha mãe era uma boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para o Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs de ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se ficar na casa de Mata-cavalos..."
(Dom Casmurro, vol. I, cap. VII)


Desde pequeno estava destinado ao sacerdócio por conta de uma promessa da mãe. Ao crescer e já envolvido nos amores de Capitu, livra-se do Seminário deixando em seu lugar um rapaz pobre que pagará sua promessa, por meio de uma cômoda “substituição”, concedida pelo bispo. Do Seminário para a Faculdade de Direito é um pulo e ei-lo feito bacharel.
Todo esse arranjo é feito de idas e vindas, cujos artifícios eram pensados e articulados por Capitu e por José Dias, que se fez cúmplice do projeto. A Bentinho cabiam as hesitações, a obediência à vontade materna e a imaginação fértil:

"Ficando só, refleti algum tempo e tive uma fantasia. Já conheceis as minhas fantasias. Contei-vos a da visita imperial; disse-vos a dessa casa de Engenho Novo, reproduzindo a de Mata-cavalos... A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva rápida, inquieta, algumas vezes tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo. (...) A fantasia daquela hora foi confessar a minha mãe que não tinha vocação eclesiástica."
(Dom Casmurro, vol I., cap.XL)


"Daí o falar-lhe na vocação que se discutira naquela tarde, e que eu confessei não sentir em mim.
- Mas tu gostavas tanto de ser padre, disse ela. (...) Como eu buscasse contestá-la, repreendeu-me sem aspereza, mas com alguma força, e eu tornei ao filho submisso que era".
(Dom Casnurro, vol. I, cap. XLI)


Do lado da classe social de Capitu, a situação era bem diversa. Os comentários do narrador sobre Pádua e sua família, às vezes bem irônicos, nos faz saber que eles pertencem à vasta camada de funcionários públicos, situando-se entre os beneficiados pela ordem escravocrata e os escravos propriamente ditos. Vizinhos pobres de Dona Glória, mãe de Bentinho, eles eram acolhidos por uma relação paternalista, quase próxima da condição de agregados. Com a morte do marido, Dona Glória passa a exercer com mais força o papel de matriarca. Capitu pouco a pouco se agrega à família de Bentinho, na medida em que Dona Glória a acolhe como uma protegida.
Capitu é filha única desse casal. Na reminiscência de Dom Casmurro, ela nos é apresentada, nas linhas e entrelinhas do narrador, num jogo retórico de sutis insinuações, como uma criatura dissimulada, astuta e ambiciosa, uma mocinha à cata de ascensão social, aliás a única alternativa daquela sociedade em relação à mulher, ainda muito longe de um provável mercado de trabalho. Mais uma vez Bento dialoga amigavelmente com o leitor de forma a persuadi-lo do que diz:

"Como vês, Capitu, aos quatorze anos tinha idéias atrevidas, muito menos que as outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se sinuosas, surdas e alcançavam o fim proposto, não aos saltos, mas aos saltinhos."
(Dom Casmurro, vol. I, cap. XVIII)


Como interpretação de um contexto cultural vigente no Brasil do século XIX, que o texto reconstrói, vemos que as relações herdadas do sistema patriarcal e persistentes na nova ordem da burguesia urbana, impõe ao papel da mulher na sociedade condições no mínimo constrangedoras como ser alienado ao homem pela instituição do casamento; isto de um ponto de vista mais geral. Por outro lado, na situação particular de Bento, existe um homem de um status superior que faz ascender até si uma moça pobre, cuja única opção na partilha dessa classe era, obviamente, o casamento; donde se conclui, também, que Capitu não era totalmente vítima da situação sendo sua ambigüidade extremamente depurada, inclusive por sua forte personalidade, como deixa entrever em sua resistência silenciosa quando acusada e acuada por Bento. Ao ouvir do marido as dúvidas sobre a paternidade de Ezequiel, Capitu exige que tudo seja dito sem meias palavras:

"Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu, tão naturais ambas que fariam duvidar as testemunhas de vista de nosso foro. (...) Assim que, sem atender à linguagem de Capitu, aos seus gestos, à dor que a retorcia, a cousa nenhuma, repeti as palavras ditas duas vezes com tal resolução que a fizeram afrouxar. Após alguns instantes disse-me ela:
- Só se pode explicar tal injúria pela convicção sincera; entretanto você era tão cioso dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfiança. Que é que lhe deu tal idéia? Diga, - continuou vendo que eu não respondia nada – diga tudo; depois do que eu ouvi o resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu agora tal convicção? Ande, Bentinho, fale! Fale! Despeça-me, mas diga tudo primeiro.
- Há coisas que não se dizem.
- XQue não se dizem pela metade; mas já que disse metade, diga tudo.
Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto confusa, o porte não era de acusada. Pedi-lhe mais uma vez que não teimasse.
- Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação."
(Dom Casmurro, op. cit., cap. CXXXVIII)

O hábito de imitar as pessoas que Ezequiel possuía, principalmente em relação a Escobar, é o primeiro indício, mas sem imediata conseqüência. O momento crucial das dúvidas (ou ciúmes) de Dom Casmurro se dá no enterro de Escobar, que morre afogado, apesar de bom nadador:

" Enfim chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...
As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou as carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã."
(Dom Casmurro, cap. CXXIII)

As dúvidas de Bentinho recomeçam a partir justamente de um comentário de Capitu:
" -Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita? Perguntou-me Capitu. Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado do papai, não precisa revirar os olhos, assim, assim... "
(Dom Casmurro, cap.CXXI)
Deste momento em diante começa a prevalecer para Bento a semelhança do filho com Escobar e a ruína da relação com Capitu. O que torna mais intrigante neste narrador é observar que o mote das semelhanças já tinha acontecido antes, quando Capitu se acha cuidado da amiga Sancha doente e o pai desta chama a atenção de Bento para a grande semelhança entre Capitu e a mãe da amiga:

"Gurgel, voltando-se para a parede da sala, onde pendia um retrato de moça, perguntou-me se Capitu era parecida com o retrato.
Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a opinião favorável do meu interlocutor, desde que a matéria não me agrava, aborrece ou impõe. Antes de examinar se efetivamente Capitu era parecida com o retrato, fui respondendo que sim. Então ele disse que era o retrato da mulher dele, e que as pessoas que a conheceram diziam a mesma cousa. Também achava que as feições eram semelhantes, a testa e principalmente os olhos. Quanto ao gênio, era um; pareciam irmãs. (...) Na vida há dessas semelhanças assim esquisitas."
(Dom Casmurro, cap. LXXXIII)

Machado de Assis reforça a ambigüidade das dúvidas e posteriores certezas do narrador ao referir este simples fato, aparentemente destituído de valor para a trama romanesca. Procedimento igual quando Bento se refere ao hábito do pequeno Ezequiel de imitar pessoas, além de Escobar. Cumpre ao leitor atentar para as armadilhas que o escritor, por trás do narrador, vai semeando no texto.

"O fato é que Bento acha o filho mais e mais parecido com o outro. Afasta-se de Capitu e se torna Casmurro. Quer matar a mulher, o filho e a si mesmo. A certa altura para buscar distração vai ao teatro, onde vê Otelo. Em lugar de entender que os ciúmes são maus conselheiros e as impressões podem trair, Bento conclui de forma insólita: se por um lencinho o mouro estrangulou Desdêmona, que era inocente, imaginem o que eu deveria fazer a Capitu que era culpada!"
(SCHWARZ, Roberto. “A poesia envenenada ..., op. cit., p 15.)
Não mata a mulher nem o filho, mas os desterra para Paris, onde Capitu falece anos depois; deseja ao filho adulto que a lepra lhe faça companhia; não veio a lepra, mas uma febre tifóide que o matou nas suas andanças arqueológicas.


4. Personagens principais
Sobre Dom Casmurro muito já foi dito aqui e alhures e nos últimos anos há uma vasta bibliografia a seu respeito, desde que o interesse da crítica deslocou-se da sumária condenação a Capitu para a observação do comportamento de Bento Santiago, que é afinal protagonista e narrador, ou como quer a teoria da literatura: um narrador-protagonista. Capitu é seu par feminino e, podemos dizer, sua antagonista (é assim que Dom Casmurro a vê quando desenrola o fio de sua vida, do meio para o fim). Fiquemos com duas descrições, dois pontos de vista bem distintos. O primeiro é de Alfredo Pujol, escrito em 1917, dezoito anos após a publicação de Dom Casmurro; reflete bem o moralismo da cultura patriarcal brasileira do início do século;
"Passemos agora a Dom Casmurro. É um livro cruel. Bento Santiago, alma cândida é boa, submissa e confiante, feita para o sacrifício e para a ternura, ama desde criança a sua deliciosa vizinha. Capitolina – Capitu, como lhe chamavam a família. Esta Capitu é uma das mais belas e fortes criações de Machado de Assis. Ela traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela, por assim dizer, instintiva e talvez inconsciente. (...) Capitu engana-o com o melhor amigo, e Bento Santiago vem a saber que não é seu o filho que presumia do casal. A traição da mulher torna-o cético e quase mal."
Em seguida, vejamos o que diz muito recentemente o já citado crítico Michael Wood, da Universidade de Princeton:
"A situação configura-se mais claramente em “Dom Casmurro”, cujo narrador, Bento Santiago, está tentando reconstruir sua vida, alcançando apenas o que ele mesmo reconhece como simulacro. Bento é um narrador mais inconfiável que Brás Cubas. (...) Mas o texto que ele escreve não é estritamente ambíguo, e sim indeterminado. Bento é suficientemente tolo e obnubilado para ser traído, além de suficientemente vaidoso para inventar o adultério da mulher a partir do nada. Está convencido de sua própria história: “Uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me...”
(Michael Wood, New York Review of Books, julho de 2002.)

A propósito de Capitu, Roberto Schwarz, com base no chão social, ou na história da nossa cultura, analisa o comportamento de Bento Santiago como um legítimo representante da sociedade patriarcal escravocrata, que o crítico qualifica, com propriedade, de obscurantista; ou seja, uma sociedade distanciada do progresso do Século das Luzes, sociedade cuja economia era gerada pelo trabalho escravo. Na qualidade de abastado herdeiro, Bentinho dava-se ao luxo de sonhar, de fantasiar e esperar que os outros decidissem sua vida. Capitu, ao contrário, era filha de obscuro funcionário público, pragmática, objetiva e qualificada por Schwarz de espírito esclarecido, mais em conformidade com as luzes do progresso:

"Capitu dirige a campanha do casalzinho com esplêndida clareza mental, compreensão dos obstáculos, firmeza – qualidades que faltam inteiramente ao seu amigo."
(Roberto Schwarz. A poesia envenenada..., op, cit., p.14)
E sobre o to be or not to be do adultério da personagem feminina, Schwarz relativiza o assunto dizendo:
"Em suma, não há como ter certeza da culpa de Capitu, nem da inocência, o que não configura um caso particular, pois a virtude certa não existe." (op. cit., p. 16, grifo do autor)

4.1. Secundários
Como personagens secundários, sem dúvida o mais interessante é o agregado José Dias, chamado em várias resenhas e criticas como o “homem dos superlativos”, pela maneira empolada de adular “seus superiores”. José Dias é o protótipo do dependente (ou personagem típica) que se agrega a uma família rica da ordem patriarcal, vivendo parasitariamente de prestar e de receber favores. Dom Casmurro dedica-lhe, logo no começo, dois capítulos – “Um dever amaríssimo” e “O agregado”, onde descreve seu aspecto bajulador com um virtuosismo, ao qual não falta também uma fina e maldosa ironia.
"Era magro, chupado, com um princípio de calva; teria os seus cinqüenta anos. Levantou-se devagar com o passo vagaroso de costume, não aquele vagar arrastado dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um dever amaríssimo! " (Dom Casmurro, cap. IV).
Os outros personagens não têm tanto relevo, a não ser Escobar o hipotético rival. Prima Justina uma meio agregada, e os tios representantes dos poderes eclesiástico e judiciário, além da matriarca D. Glória representam classes sociais daquela sociedade.

5. Tempo e Espaço
Rio de Janeiro, capital do Império, cujo imperador D. Pedro II era voltado aos estudos humanísticos, às artes e mesmo aos progressos da ciência. Admirador dos princípios da Ilustração, ou Iluminismo, conhecedor da Europa, principalmente da França, da Grécia e do Oriente Médio, D. Pedro II convivia com a extrema contradição de governar um país escravocrata, cujos latifundiários sustentavam a economia e dominavam a política do país, em completo descompasso com as idéias liberais advindas da Revolução Francesa de 1789, que o Imperador adotara para consumo externo.
"Como é sabido, éramos um país agrário e independente, dividido em latifúndios, cuja produção dependia do trabalho escravo por um lado, e por outro do mercado externo. (...) Além do que, havíamos feito a Independência há pouco, em nome das idéias francesas, inglesas e americanas, variadamente liberais, que assim faziam parte de nossa identidade nacional. Por outro lado, com igual fatalidade, este conjunto ideológico iria chocar-se com a escravidão e seus defensores, e o que é mais, viver com eles".
Tempo e Espaço no romance estão em perfeita sintonia. Isto equivale dizer que tanto o tempo narrado como o espaço onde se desenrola a trama se passam na segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro. Não há descrições detalhadas dos interiores das casas, das ruas e dos salões da burguesia fluminense; mesmo porque Machado de Assis não concordava com o tipo do romance realista que descrevia minuciosamente os ambientes; preferia antes ressaltar os aspectos do convívio social e familiar e o comportamento psicológico dos personagens. É próprio Machado quem marca sua posição numa crítica que escreve para O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, incluído no volume III de sua Obra completa:
"O Sr. Eça de Queiroz de Queiroz é um fiel e aspérrimo discípulo do realismo propagado pelo autor do Assomoir (Émile Zola). (...) Pois a nova poética (...) só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha. ( Vol. III, pp. 903/4)"
Fica claro, então, que Machado privilegia o tempo interior, ou seja, as ações e reações íntimas dos personagens, diferente do convencional romance realista que preferia mais a objetividade das ações e a impessoalidade dos personagens. Mais afastado ainda estava da estética naturalista, que agregou-se ao romance realista, cujo representante máximo foi o francês Émile Zola e cujo romance La Faute de l´Abbé Mouret ( A falta do Padre Mouret) influenciou fortemente “O crime de Padre Amaro, de Eça de Queiroz e os romances de Aluísio de Azevedo, no Brasil. O Naturalismo na literatura deriva-se do realismo, mas emprega fortemente as teorias cientificistas da hereditariedade determinista e da filosofia positivista social e de Auguste Comte.

Linguagem/Estilo

"(...) o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam e urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem..."
Memórias póstumas de Brás Cubas

Este trecho do romance é dito pelo narrador Brás Cubas, mas poderia ser, igualmente, dito pelos vários narradores de Machado de Assis, inclusive o Dom Casmurro. Na literatura brasileira, seu estilo é inconfundível. Daí advém o que os estudiosos chamam de genialidade e nós, leitores comuns, podemos falar de charme e sedução. Senão vejamos: Machado emprega no trecho acima duas maneiras de atrair o leitor, usando já naquele tempo duas funções da linguagem, que só no século vinte a Lingüística estudaria e classificaria: A FUNÇÃO METALINGÜÍSTICA, também chamada de METALINGUAGEM e A FUNÇÃO APELATIVA, também chamada de APELO.
A primeira explica a significação da palavra e está ligada ao CÓDIGO da Língua; seu uso na Literatura “explica” a forma ou o estilo usados. É isso o que Machado de Assis, na pele do narrador Brás Cubas, fez no texto acima: “este livro e o meu estilo são como os ébrios...”. A Função Apelativa é dirigida ao Destinatário pelo Remetente. Desta função já falamos antes, com respeito ao narrador. Machado de Assis usa largamente esta função toda vez que se dirige ao leitor nas suas inúmeras digressões (desvio momentâneo do que se fala ou escreve).
Outra figura de Estilo muito usada por Machado é a INTERTEXTUALIDADE, uma espécie de diálogos entre textos: ou seja, o uso de citar textos da literatura ou da cultura universal como elementos da própria narração. No caso de Machado, são flagrantes os exemplos, quer sejam literários, filosóficos, bíblicos ou históricos. É bom frisar que não são meras citações que demonstrariam apenas a erudição do autor, mas tratam-se de chaves para compreender a sinuosidade e as artimanhas do enredo, como, por exemplo, a citação que ele faz de Otelo, usando a tragédia de Shakespeare para justificar a sua certeza da infidelidade de Capitu. Essas citações são “manipuladas” quase sempre, e não podem ser vistas do mesmo modo como são empregadas no contexto do original. Assim, ele cita Homero, Camões, Montesquieu em francês, o Eclesiaste no capítulo final, sempre com algum propósito.
Além disso, a IRONIA está bem presente em quase cada linha do seu texto, como essa sua provocação: “...o maior defeito deste livro és tu, leitor.”
Sobre a LINGUAGEM, ela é típica do bem escrever do século XIX, aquilo que chamamos de linguagem castiça (pura) com respeito ao vocabulário e à sintaxe. Alguns termos se acham superados pela própria dinâmica histórica da língua, outros são específicos de usos próprios daquele tempo: mas nada impede que um bom leitor ou os recorde de outras leituras, ou os entenda pelo sentido. Antonio Candido, um dos maiores críticos do país, sintetiza assim sua escrita que sugere,
"(...) o todo pelo fragmento, a estrutura pela elipse, a emoção pela ironia, e a grandeza pela banalidade. (...) E o mais picante é o estilo guindado e algo precioso com que trabalha, o que se de um lado pode parecer academismo, de outro sem dúvida parece uma forma sutil de negaceio, como se o narrador estivesse rindo um pouco do leitor. A sua técnica consiste essencialmente em sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida (como os ironistas do século XVIII); ou estabelecer um contraste entre a normalidade social dos fatos e a sua anormalidade essencial; ou sugerir, sob aparência do contrário, que o ato excepcional é normal e anormal seria o fato corriqueiro. Aí está o motivo de sua modernidade, apesar de seu arcaísmo de superfície."