segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Casablanca, Clichês? - Tradução

Umberto Eco, Casablanca, or the clichés are having a ball - tradução de Moema Selma D'Andrea.

Quando pessoas de seus cinqüenta anos sentam defronte a uma televisão para assistirem a uma reapresentação de Casa Blanca, isto é ordinariamente um tópico nostálgico. Contudo, quando o filme foi mostrado a universitários americanos, rapazes e moças saudaram cada cena e cada diálogo clicherizado (“Reunir os suspeitos usuais”, “Foi um bombardeio ou meu coração disparando?” – ou até mesmo quando Bogey fala “criança”) com aplausos comumente destinados aos espetáculos de futebol. Eu tenho visto, inclusive, uma jovem audiência italiana, em reapresentações no cinema, reagir da mesma forma. Qual é, por conseguinte, a fascinação de Casa Blanca?
A questão tem lá sua legitimidade, porque, falando esteticamente, (ou por um exato senso crítico) Casa Blanca é na verdade um filme medíocre. È uma tira de quadrinhos, uma mixórdia, com uma baixa credibilidade psicológica e com uma pequena seqüência de efeitos dramáticos. E nós sabemos a razão disto: o filme foi sendo filmado ao longo de sua produção, e até o último momento o diretor e o roteirista não sabiam se Ilse abandonaria Victor ou Rick. Portanto, foram aqueles momentos de inspirada direção que provocaram a arrancada de aplausos pela inesperada ousadia, de fato representando decisões tomadas no auge do desespero. Por conseguinte, o que é responsável pelo sucesso desta cadeia de peripécias, ou atribulações, em um filme que é presentemente bem avaliado, visto por uma segunda, terceira e quarta geração, arrancando aplausos reservados para ária de ópera que gostamos de ouvir repetidas vezes, ou o entusiasmo que nos acomete por uma excitante descoberta? Existe mesmo um elenco formidável atores. Mas isto não é tudo. Estão presentes os ingredientes dos amores românticos – ele amargo, ela terna – mas em ambos isto é visto como um favorecimento. E Casa Blanca não é Stagecoach, outro filme periodicamente revisitado. E o que mais? Tentaram ler Casa Blanca como T.S. Eliot releu Hamlet. Atribui-se este encantamento não a um bem sucedido trabalho (atualmente considera-se que Hamlet é uma das obras menos afortunadas de Shakespeare) porém alguma coisa se lhes opõe: Hamlet foi o resultado de uma mal sucedida fusão entre alguns prematuros Hamlets, os quais teve a vingança como tema (a loucura como estratégia) e mais um cujo objetivo foi o auge da crise, configurada pelo pecado da mãe, tendo como conseqüência a discrepância entre a excitação nervosa de Hamlet e a incerteza e improbabilidade do crime de Gertrude. Crítica e público acham Hamlet bonito porque é interessante, e o julgam interessante porque é bonito.
Numa menor escala, a mesma coisa aconteceu em Casablanca. Forçados a improvisar um enredo, os autores misturaram um pouco de tudo e, nessa mistura, eles criaram um repertório de confiável legitimidade. Quando a escolha desta qualidade vê-se limitada, o resultado é um filme banal, um produto massificado, ou simplesmente kitsch. Além do mais, quando esta mistura é usada exagerada e indiscriminadamente, o resultado é uma arquitetura semelhante à Igreja da Sagrada Família de Gaudi, em Barcelona. Produz uma sensação de vertigem, um golpe de brilhantismo.
Tudo isto não nos permite esquecer como o filme foi feito e como nos foi apresentado. Ele se abre num lugar essencialmente mágico – Marrocos, o Exótico - e começa com uma sugestão de música árabe que se dissolve na Marselhesa.
Desta forma, ingressamos no Rick´s Place ouvindo Gershwin. África, França, América. Imediatamente, um entrelaçamento de arquétipos ancestrais nos aproxima do clima cinematográfico. São estas situações que têm presidido estórias incessantemente através dos tempos. Usualmente, para fazer um bom filme é suficiente apenas um único uso de situações arquetípicas. Um amor infeliz, por exemplo, ou um desenlace amoroso. Mas Casablanca não se satisfez com isto: ele usou-as todas. A cidade é a passagem para a Terra Prometida (ou, se se preferir, a passagem Noroeste). Tanto é assim que a passagem se constitui a pedra de toque, o único caminho (“o caminho e o caminho e o caminho” fala em off uma voz no início.) A passagem para a sala de espera da Terra Prometida requer uma Chave Mágica, o passaporte. É em torno da conquista desta chave que as paixões se desencadeiam. O dinheiro (que surge na forma de variados ícones, usualmente como um Jogo Fatal, a roleta) poderia dar a impressão de ser o meio para obter a Chave. Mas finalmente nós descobrimos que esta chave pode ser obtida somente através de uma Dádiva – uma doação do passaporte; além disso, a doação acarreta em Rick o Desejo de seu próprio sacrifício. Por sua vez, é também a história de uma ciranda dos Desejos, nos quais só dois deles serão contemplados: aquele de Victor Laszlo, o mais genuíno dos heróis e o outro do casal búlgaro. Em conseqüência, todos aqueles cujas paixões são impuras fracassam. Por este caminho, nós temos um outro arquétipo: o triunfo da Pureza. O impuro não alcança a Terra Prometida, nós os perdemos de vista antes disso. Mas eles alcançam a pureza pelo sacrifício – e este o leva à Redenção. Rick resgata não somente a si próprio mas também o capitão da polícia francesa. Nós percebemos, implicitamente, a existência de duas Terras Prometidas: uma a América (para muitos através de uma meta artificial), e a outra é a Resistência – a Guerra Santa. Aquela para onde Victor parte e aquela para onde Rick e o Capitão francês vão aliar-se a de Gaulle. E se o recorrente símbolo do aeroplano surge freqüentemente no vôo para a América, a Cruz de Lorena aparece apenas uma vez antecipando o outro gesto simbólico do Capitão, no fim quando ele arremessa à distancia a garrafa de água de Vichy enquanto o avião está partindo. Uma outra transmissão do mito percorre todo o filme: o sacrifício de Ilse em Paris, quando ela abandona o homem amado, após o retorno do herói ferido. A búlgara sacrifica a lua de mel quando ela própria cede sua felicidade em favor de seu marido. Da mesma forma, Victor se sacrifica quando se prepara para deixar Ilse partir com Rick, contanto que ela fosse salva.
Nesta orgia de arquétipos (acompanhada pelo arquétipo do Servo Fiel, tema da relação de Bogey com o pianista negro Dooley Wilson) está inserido o tema do Amor Infeliz: infeliz para Rick que ama Ilse e não pode tê-la; infeliz para Ilse que ama Rick e não pode partir com ele; enquanto Victor é infeliz porque compreende, na realidade, não possuir o amor de Ilse. A reciprocidade de amores infelizes produz voltas e reviravoltas: no início, Rick é infeliz porque não compreende o motivo de Ilse tê-lo deixado; enquanto Victor é infeliz porque não compreende o motivo da atração de Ilse por Rick; finalmente Ilse é infeliz porque não entende o motivo de Rick tê-la deixado partir com seu marido.
Estes três amores infelizes (ou Impossíveis) tomam a forma de um triângulo. Além do mais, no arquétipo do triângulo sentimental há um Marido Traído e um Amante Vitorioso. Aqui os dois homens sofrem a perda, mas nesta derrota (e pairando acima dela) um elemento adicional contempla a trama; no entanto, tal a maneira sutil como se apresenta, só dificilmente nós podemos perceber. Neste elemento, muito subliminarmente, uma sugestão de amor viril ou Socrático paira no ar. Rick admira Victor; Victor é ambiguamente atraído por Rick e isto parece algo quase visível, como se cada qual dos dois jogassem o duelo sacrificial para satisfazer o outro. Em todo caso, como nas Confissões de Rousseau, a mulher se coloca como um elo intermediário entre os dois. Ela própria é destituída de valor positivo; apenas os dois homens o possuem.
Em oposição a este pano de fundo carregado de ambigüidades, ambos os personagens são figuras estratificadas, posicionadas para o bem ou para o mal. Victor joga um duplo papel como um instrumento de ambigüidade na história deste amor, e como um agente iluminado na intriga política – ele é a Beleza em oposição à Besta Nazista. O tema da Civilização versus Barbárie envolveu-se com outros, e em direção a um Retorno Odisseico somou-se à ousadia de uma Ilíada explicitamente bélica.
Circundando esta dança de mitos eternos, nós percebemos os mitos históricos, ou mais precisamente os mitos do cinema devidamente requentados. Bogart, ele próprio, personifica um pouco três deles: o Aventureiro Ambíguo, composto de cinismo e generosidade, o Amante Ascético, e ao mesmo tempo é um Alcoólatra Redimido (ele torna-se alcoólatra para ser, subitamente redimido, ao passo que já era um ascético nato). Ingrid Bergman é uma Enigmática Mulher, ou Femme Fatale. Em razão disto, surgem as canções míticas:They´re Playing Our Song; The Last Day in Paris; América, África, Lisbon as a Free Pot; e a Border Station, ou Last Outpost on the Edge of the Desert.
Há ainda a Legião Estrangeira (cada personagem possui um diferente nacionalidade e uma diferente história para contar) e finalmente há o Grande Hotel (pessoas indo e vindo). Rick´s Place abriga um círculo mágico onde tudo pode acontecer (e acontece): amor, morte, perseguição, espionagem, lances de sorte, seduções, música, patriotismo (A origem teatral do enredo, e sua pobreza de meios, leva a uma admirável condensação de eventos em um único cenário). Este lugar pode ser Hong Kong, Macao, l´Enfer du Jeu, uma antecipação de Lisboa igual a Showboat.
No entanto, precisamente porque existem tantos arquétipos, precisamente porque Casa Blanca cita inumeráveis filmes, e cada ator repete um lance representado em outra ocasião, a ressonância da intertextualidade seduz o telespectador. Casa Blanca traz com isto, semelhante a um rastro de perfume, outras situações as quais levam o telespectador a se entregar completamente e de boa vontade, acolhendo-as, sem se dar conta de outros filmes que só apareceriam mais tarde, tais como To Have and Have not, quando Bogart representa de fato o herói de Hemingway, enquanto aqui em Casa Blanca ele já carrega uma conotação hemingwaynesca pelo simples fato de Rick, da maneira como nos foi informado, lutou na Espanha (e igual a Malraux ajudou a Revolução Chinesa). Peter Lorre traz consigo uma reminiscência de Fritz Lang, Conrad Veidt envolve seu oficial germânico num pálido aroma do The Cabinet of Dr. Caligari – ele não é um implacável executor, mas um noturno e diabólico César.
Por tudo isto Casa Blanca não é um único filme. Ele é muitos filmes, uma antologia. Provavelmente, e de uma forma acidental, ele si fez a si próprio, contra a intenção de seus autores e atores, que tiveram, por conseguinte, uma pequena parcela sobre seu controle. Esta é a razão de ele ir na contramão das teorias estéticas e das teorias cinematográficas. Para tanto, ele se revela com um poder narrativo quase telúrico, ou seja, em seu estado espontâneo sem que a Arte intervenha ou discipline. Por isso nós podemos aceitá-lo quando os personagens mudam de humor, moral e psicologicamente, de um momento para o outro; quando conspiradores tossem para interromper uma conversa se um espião se aproxima; quando prostitutas choram ao som de La Marseillaise. Quando todos os arquétipos explodem despudoradamente, nós alcançamos profundezas homéricas. Dois clihês nos fazem rir. Uma centena deles nos comove. Por esta razão, nós percebemos vagamente que eles dialogam entre si, celebrando um colóquio. Assim como no auge do sofrimento pode-se encontrar um prazer sensual e assim como o auge da perversão toca de perto a energia mística, também o auge da banalidade permite-nos capturar um vislumbre do sublime. Algo agiu no lugar do diretor. Se não foi nada disso, então é um fenômeno digno de admiração.

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