segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

O Xangô de Baker Street, ou A Feição Ilustrada na Terra Tropical.

Romance de entretenimento, como o chamaria José Paulo Paes, o best-seller de Jô Soares veio para ficar e merece algumas considerações. Sem poder ser classificado como uma literatura cult, o romance tem tudo para prender o leitor brasileiro, acostumado às importações massificadas dos best-sellers do primeiro mundo, diferenciando-se por destacar, ficcionalmente, um período da nossa sociedade do século XIX, bem conhecida da literatura erudita de Machado de Assis. Sob a feição de um romance policial, esconde-se uma estratégica crônica dos costumes da capital do país, uma burlesca, mas sutil, caricatura de uma sociedade colonial afrancesada, onde a feição ilustrada de um detetive de ficção - Sherlock Holmes - e seu famoso poder dedutivo se vêem obnubilados pela não menos poderosa força dos trópicos. Mas vamos por partes.
Consideremos primeiro a diferença entre literatura erudita e literatura de entretenimento, também rotulada por alguns críticos - numa única direção e de uma forma homogeneizadora - como cultura de massa, literatura kitsch, ou ainda como best-seller. São afirmações contundentes, que se por um lado apontam o estereótipo e a banalização contidos em alguns exemplos desta prosa, por outro opõem simplesmente a tal “literatura” a uma arte da escrita que problematiza a nossa pobre vida dentro de uma proposta artisticamente bem mais elaborada. Tematizando entre estes dois pólos excludentes, os críticos da cultura de massa apegam-se também a estereótipos ideológicos, muitos deles advindos da “alta cultura” e do bom gosto das classes dominantes, envolvidas elas também no processo da comercialização dos bens simbólicos.
No contexto brasileiro tal situação é bastante complicada. Na sua maioria, a reflexão sobre estes dois tipos de prosa romanesca provém de estudiosos europeus, cujo contexto de modernização tanto industrial quanto dos bens simbólicos já se achava razoavelmente solidificado desde o século XIX, e isto faz uma grande diferença para o nosso contexto. Em outras palavras, “o Modernismo ocorre no Brasil sem modernização”, em meio à quase inexistência da indústria do livro e de uma grande massa populacional analfabeta ou semi-alfabetizada. Segundo ainda Renato Ortiz (que segue a pista deixada por Roberto Schwarz nas “idéias fora do lugar”) “... o ideário liberal chega (ao Brasil) antes do desenvolvimento das forças sócio-econômicas que o originaram no contexto europeu, ele se encontra na posição esdrúxula de existir sem se realizar.” Veremos mais adiante como isto toca de perto a temática que Jô Soares desenvolve no Xangô de Baker Street.
Lembremos ainda da colocação que Antonio Candido faz sobre a literatura como um sistema triádico, formado por autor- obra- público. Sem entrar no mérito da famosa questão do “seqüestro do barroco” - tão insistentemente lembrada quando se trata da posição do crítico na Formação da literatura brasileira: momentos decisivos - temos de admitir que a existência de um público ledor fortalece a produção literária, que, sem ele, circularia apenas no meio restrito de amigos e alguns poucos leitores esclarecidos.
Assim, entre a ilustração européia e o verniz esclarecido da pequena parcela da classe dominante brasileira a diferença é gritante. E o que dizer da grande maioria que não tem acesso aos bens simbólicos das grandes obras artísticas, sejam elas na música, na pintura ou na literatura? Acontece então um fenômeno inverso: essa população de semi-letrados, ao tomar contato com a cultura urbana, são literalmente assimilados pela linguagem televisiva, ou pela cultura massificada.
Voltamos então ao problema da precariedade da indústria do livro no nosso país, pois segundo José Paulo Paes, “Se a televisão conseguiu em tempo relativamente breve o que a indústria do livro não conseguiu até hoje, foi talvez devido à circunstância de ter chegado cedo a um país onde o livro chegou tarde. Só a partir dos anos 30 é que se pode falar de uma indústria editorial realmente brasileira; até então, grande parte das nossas minguadas edições eram impressas fora, em Portugal e na França. [...] Se o livro continua sendo insubstituível como instrumento de cultura e saber, perde de longe para a televisão como meio de entretenimento. [...] Para ser fruído, o livro, mesmo de entretenimento, exige um mínimo de esforço intelectual, dispensável na imagem falada no vídeo.”
Cheguemos agora à discussão sobre a literatura de entretenimento e seu público brasileiro. Ainda seguindo a pista de José Paulo Paes, a uma produção nacional de literatura de entretenimento, com os encargos promocionais para o seu reconhecimento, a industria cultural brasileira preferiu “adquirir os direitos de tradução de best-sellers estrangeiros que passaram por seus países de origem pelo teste da popularidade e aqui chegam já aureolados de prestígio publicitário. Um caso, portanto, menos de substituição de importações que de puro e simples transplante, típico daquele fluxo unidirecional entre centro e periferia a que o subdesenvolvimento econômico constrange.”
Numa outra ponta, o escritor brasileiro - por não ter o suporte de uma desenvolvida indústria livresca e, correlatamente, de um público de leitores que não lhe dá a contrapartida do lucro - este criador de ficção se vê forçado a se “amparar” no Estado, que passa a exercer o papel de um novo “mecenas” nesta nossa “modernidade”. É o caso de grandes escritores brasileiros, entre eles Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego, Murilo Mendes e do próprio Machado de Assis no século XIX.
Voltemos ao ponto de partida que foi a convivência de uma literatura erudita ao lado da literatura de entretenimento. Em favor da última, diz Umberto Eco: “Em muitas dessas sisudas condenações do gosto massificado, no apelo desconfiado a uma comunidade de fruidores ocupados unicamente em descobrir as belezas ocultas e secretas da mensagem reservada da grande arte, ou da arte inédita, nunca se dá lugar ao consumidor médio (a cada um de nós na pele do consumidor médio), que, no fim de um dia de trabalho, pede a um livro ou a uma película o estímulo de alguns efeitos fundamentais (o arrepio, a risada, o patético) para restabelecer o equilíbrio da própria vida física e intelectual.”
Ora, são justamente estas causas que José Paulo Paes questiona no já citado trabalho. “Num país como o Brasil, de público ledor ainda reduzido, já ele não consegue viver da pena ou da máquina de escrever. A dificuldade de profissionalizar-se ajuda a explicar a quase ausência, entre nós, daquele tipo de artesão despretensioso de cuja competência nasce a boa literatura de entretenimento. [...] Numa cultura de literatos como a nossa, todos sonham ser Gustave Flaubert ou James Joyce, ninguém se contentaria em ser Alexandre Dumas ou Agatha Christie. Trata-se obviamente de um erro de perspectiva: da massa de leitores destes últimos autores é que surge a elite dos leitores daqueles, e nenhuma cultura realmente integrada pode dispensar de ter, ao lado de uma vigorosa literatura de proposta, uma não menos vigorosa literatura de entretenimento.”



2. O xangô de Baker Street, do conhecido entrevistador de televisão Jô Soares, está a mais de sete semanas ocupando o primeiro lugar na lista de sucessos de ficção, superando, inclusive o livro Chatô, do jornalista Fernando de Morais, que trata da biografia de Assis Chateaubriand. Se considerarmos a enxurrada de publicações biográficas e autobiográficas - aqui e lá fora, coincidentemente produzidas por jornalistas, além dos livros de “apoios” morais, existenciais, místicos e sexuais, etc. - já poderemos avaliar que a ficção de Jô Soares caiu no gosto do público com mais de 150 mil livros vendidos; algo inédito no Brasil para escritores iniciantes. Devido ao seu inegável talento como humorista e ao seu programa televisivo - que por sinal atinge uma boa parcela de espectador cult - o romancista corre o risco de ser ofuscado pela fama que desfruta na midia.
Afinal de que trata o romance, ou melhor, como enquadrá-lo dentro do gênero romanesco? É uma das primeiras preocupações de quem faz resenhas ou comentários e mesmo para os críticos que analisam a literatura de ficção. Quase todos afirmam, de cara, tratar-se de um romance cômico-policial, como está escrito na apresentação escrita na orelha do livro. O que não deixa também ter sua parte de verdade. Se ficarmos por aí, teremos então uma leitura de entretenimento, um rótulo que também satisfaz, já que a maioria de seus leitores pertencem a uma mídia que procura um desafogo para suas tensões e um refresco para os problemas do dia-a-dia.
Algo porém chama a atenção: em um país onde a crise financeira não dá descanso e torna incerto o dia de amanhã, adquirir um livro pelo preço de 24.00 reais não deixa de ser um luxo. E também não deixa de ser interessante a solução encontrada por alguns leitores; quem conta é o próprio Jô Soares em recente entrevista para a revista Isto é (22.11.95): um grupo de três pessoas aproxima-se dele e pede três autógrafos para um único livro; explicaram então que tinham se cotizado para comprar o romance.
Mas voltemos ao romance e à sua forma. Resumidamente vamos falar de seu enredo. A ação romanesca se passa no Rio de Janeiro, século XIX, e mais precisamente durante o reinado de D. Pedro II. A corte está em êxtase pela chegada da atriz francesa Sarah Bernhardt para uma longa temporada no Imperial Teatro de São Pedro de Alcântara, na praça da Constituição, no Rossio. Ambos os dados são referencialmente verídicos. Paralelamente ao acontecimento social, a intriga envolve indiretamente o Imperador no roubo de um famoso violino Stradivarius, que ele tinha presenteado a uma amiga, a baronesa de Avaré. Segundo os potins da cidade (leiam-se fofocas) a amizade dos dois incomodava sobremaneira à Imperatriz Tereza Cristina. Para solucionar o desaparecimento, o Imperador aceita a sugestão da atriz de quem Sherlock Holmes é amigo e o convida a vir ao Rio de Janeiro para desvendar o mistério do roubo do violino, o qual, naturalmente, se fará acompanhar de seu amigo Dr. Watson.
Eis que entra o dado ficcional. Um imperador brasileiro, ligado à história do país, convida um ser de ficção a participar da trama através de uma personagem real - a atriz Sarah Bernhardt - que, por sua vez, se diz amiga da personagem criada por Conan Doyle. Temos assim dois planos narrativos e intercambiáveis: na camada superficial, o leitor depara-se com personagens verídicos, pertencentes à vida da corte, nas pessoas de intelectuais como Olavo Bilac, Aluísio e Artur de Azevedo, Guimarães Passos, os compositores Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth, Paula Nei, Coelho Neto, José do Patrocínio, ao lado de seres de ficção como marqueses, barões e viscondes de nossa nobreza caramuru - como diria o conhecido “Boca de Inferno”. E esta parte do romance compõe uma deliciosa crônica de costumes da capital do Império, com muita malícia e um humor sutilmente crítico.
Numa segunda camada, a trama torna-se mais apimentada pelo assassínio em série de mulheres jovens. O famoso detetive inglês envolve-se com o núcleo das investigações criminais, a convite do delegado Pimenta, um personagem bonachão e medianamente inteligente. Ao todo são quatro mortes e todas elas executadas por um psicopata misterioso, inteligente, cujo móvel dos assassinatos tem, evidentemente, um fundo freudiano. Ao tomar conhecimento dos crimes (àquela altura apenas dois) o detetive inglês cria um neologismo atual:

“ Em toda minha carreira nunca vi nada semelhante, Tirar brutalmente a vida dessas jovens, sempre da mesma forma e sem o menor propósito. O homem é um demente que gosta de assassiná-las em série, é o que eu chamaria de serial killer. Isto mesmo, serial killer - decretou Sherlock Holmes cunhando a expressão”.

E assim, na ficção de Jô Soares, o século XIX brasileiro se antecipa às plurissignificações idiomáticas que as exigências da sociedade moderna adota, em virtude de sua complexidade. Antecipa-se (e apropria-se) igualmente à antropofagia oswaldiana: de provincianos e atrasados, passaríamos a adiantados na superioridade semântica, mesmo tendo sido criado pelo estrangeiro, mas cuja causa e efeito se encontram aqui. A ação prossegue, com o assassino deixando propositais pistas, tais como uma corda de violino no corpo de cada vítima, com sua correspondente nota musical, - além de arrancar-lhes o par de orelhas. No vai-vem das delícias tropicais Sherlock Holmes confunde-se em seus poderes dedutivos, a ponto de ignorar indícios que lhes caem às mãos.
Vejamos agora de que maneira, o autor subverte a lógica linear criada pela ficção detetivesca. Desde a criação do romance policial, cuja máxima criação ainda é atribuída a Edgar Allan Poe, com seu célebre ilustrado e dedutivo Monsieur Dupin, desvendando Os crimes da rua Morgue, sua tipologia segue mais ou menos regras estabelecidas: há ou houve um crime (ou um roubo) e alguém que vai tratar de elucidar o enigma. Trata-se enfim do policial clássico que, segundo Todorov, “não transgride as regras do gênero”. Nele, o narrador conta a posteriori as peripécias da trama e o êxito do amigo: é o caso do Dr. Watson que é o narrador “oficial” das proezas dedutivas de Sherlock Holmes.
Existe ainda o roman noir, da década de trinta, que se diferencia por fazer coincidir os crimes e as perversões durante a trama, colocando-se no presente da narração e obrigando o detetive a seguir os passos do(s) criminoso(s), através de uma intensa ação. Neste caso, muitas vezes o que está em jogo é menos o poder analítico-policialesco e mais a dosagem de valentia daquele que enfrenta o perigo e dá o xeque-mate no transgressor.
Em Xangô de Baker Street não há um narrador presentificado como nos livros de Conan Doyle, nos quais o Dr. Watson imortaliza as façanhas do amigo. A narração se faz por ela mesma, através da ação e do desempenho dos personagens. Cria-se, assim, a “ilusão da realidade” que é um dos princípios do romance realista tradicional, sem a presença ostensiva do narrador. A prosa é elegante, condizente com o vocabulário da nossa corte no século XIX, na qual o Imperador é um ilustrado adepto do liberalismo francês, fala corretamente duas ou três línguas e cria ao seu redor uma provinciana corte afrancesada. Os momentos em que sobressaem este provincianismo são tratados com uma fina ironia pelo autor. Numa passagem em que o delegado Mello Pimenta pergunta a Sarah Bernhardt se ela concorda ou não com a mudança do Império para a República, a atriz responde com arte e astúcia (o savoir faire dos franceses) : “- Je ne me mêle pas de ses affaires...”, o que foi traduzido por um dos elegantes rapazes da sociedade: “Ela viu o Mello com seis alferes.” (Xangô, p. 26)
Outros indícios de fina ironia crítica a respeito da subserviência aos modelos europeus são apontados no espírito macaqueador da sociedade brasileira naquilo que há de mais superficial e provinciano. Há um momento em que Coelho Neto pergunta ao detetive o que ele está achando do Brasil. Pergunta clássica de entrevistador de televisão a que o detetive também responde em resposta equivalente:
“- Um lugar fascinante, realmente fascinante. Estou encantado com os costumes da terra. O povo é extremamente cordial. Sinto-me à vontade, como se estivesse em casa. Há algo, todavia, que não entendo - completou Sherlock, perplexo.” Instado a responder, ele diz que não compreende o fato de os homens se vestirem à européia, num país tropical. (Xangô, p. 174) Em seguida, A baronesa de Avaré responde: “- O senhor Holmes há de nos perdoar, mas a civilização tem seu preço. Il faut souffrir pour être beau...” Civilizadamente, também, Sherlock compreende “a lógica” do imperativo civilizador, mas decide mandar fazer roupas de linho branco para seu conforto, apesar de ser alertado pelos circunstantes de que o uso do tal tecido era coisa do “zé-povinho”.
Outro fato interessante é o dado de o detetive falar a nossa língua, com sotaque aportuguesado, aprendida numa de suas andanças por colônias portuguesas de além-mar. Para a funcionalidade do romance este dado é essencial pois facilita suas investigações e possibilita a desenvoltura com que ele se adapta às “excentricidades” tropicais. Dr. Watson, ao contrário, necessitando de intérprete, e torcendo o nariz aos nossos costumes, cai em situações ridículas, como, por exemplo, as circunstâncias em que ele “inventa” o uso da caipirinha. E exatamente é ele que incorpora a pomba-gira, num terreiro de xangô, cujo pai de santo tinha sido solicitado por suas entidades para desvendar o mistério dos assassinatos e descobrir o assassino, que em língua Nagô é chamado de Oluparun - o destruidor.
As pistas são dadas pela entidade debochada, e, mais uma vez, Sherlock não consegue montar o enigma, obnubilado que estava pelos encantos da terra e, particularmente, pela paixão que sentia por uma artista mulata - a Ana Candelária. Em decorrência de seu romance com a brasileira, seus poderes dedutivos ainda se tornam mais frágeis ao trocar o costumeiro uso da cocaína pelos prazeres mais sensuais da cannabis sativa.
Como foi falado anteriormente, a narração se faz por si mesma com o distanciamento do narrador. No entanto, o autor introduz um corte nesta linearidade ao trazer o assassino em cena. Nos momentos anteriores a cada crime, a disposição gráfica do livro muda o registro para o itálico e o discurso transforma-se em monólogo interior do perigoso psicopata: o tom é íntimo, psicológico, diferente, portanto, do registro realista da narração como um todo. Ao completar seu quarto crime, cuja vítima é aquela visada desde o primeiro momento por sua mente deformada, ele simplesmente sai à francesa, embarcando no mesmo navio em que um Sherlock, frustrado, volta a Londres. Daí o inusitado do romance, que à primeira vista poderia ser policial, mas que conserva o enigma dentro da ação e da trama quase até o fim , insinuando, inclusive, que o assassino continua agindo em Londres, na pele de Jack, o estripador, também feito através de recursos gráficos como uma nota no The Star e no The Times.
Tratando-se de uma leitura comentada, tentei trazer algumas informações sobre a estrutura do romance, mas sem maiores pretensões de uma análise em profundidade. Também não sei se seria o caso. Detalhes ricos não foram explorados, como por exemplo as deliciosas descrições do Rio antigo, fiéis às pesquisas feitas por Jô Soares, que - outra surpresa - no fim do livro expõe uma ampla bibliografia, fato inédito em termos de ficção, até onde conheço.

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