segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Guimarães Rosa e o Conto da Experiência Moderna: A Terceira Margem

"A arte de narrar tende para o fim porque o lado épico da verdade, a sabedoria, está agonizando. Mas este é um processo que vem de longe. Nada seria mais tolo do que querer vislumbrar nele um ‘fenômeno de decadência’ – muito menos ainda ‘moderno’. Ele é antes uma manifestação secundária das forças produtivas seculares que aos poucos afastou a narrativa do âmbito do discurso vivo, ao mesmo tempo em que tornava palpável uma nova beleza naquilo que desaparecia." (Walter Benjamin)


No antológico texto de Walter Benjamin - O Narrador - sua análise se prende ao fim da narrativa tradicional (oral) aquela calcada na memória e na transmissão da experiência por seus narradores. O desaparecimento deste tipo de narração e de narradores está condicionado ao gradual desaparecimento da épica de tradição oral, à medida que “as forças produtivas seculares (...) afastaram a narrativa do âmbito do discurso vivo...” Em outras palavras, o fim gradativo das formas produtivas artesanais e a obsolescência do narrador como corrente transmissora da experiência viva, radicada na memória que passa de geração em geração, faz surgir uma outra espécie de narrador: o narrador moderno, o narrador da forma romanesca:

"O que separa o romance de todas as outras formas de criação literária em prosa - o conto de fada, a saga e até mesmo a novela – é o fato de não derivar da tradição oral, nem entrar para ela. Mas isso o distingue, sobretudo, da ação de narrar. O narrador colhe o que narra na experiência, própria ou relatada. E transforma outra vez em experiência dos que ouvem sua história. O romancista segregou-se. O local do surgimento do romance é o indivíduo em sua solidão, que já não consegue exprimir-se sobre seus interesses fundamentais, pois ele mesmo está desorientado e não sabe mais aconselhar."

As formas modernas dos romances e contos atestam à exaustão “a perda do sentido da vida” na maneira como se fragmentam, se enovelam, se auto-alimentam de suas próprias formas e recusam o ponto final, que seria “a moral da história”; história para sempre perdida em suas formas e em sua capacidade de memória viva.
Diz Walter Benjamin:

A memória é a capacidade épica por excelência. Só graças a uma memória abrangente pode a épica, por um lado, apropriar-se do curso das coisas e, por outro, fazer as pazes com o desaparecimento delas – com o poder da morte.


A TERCEIRA MARGEM

"Sou homem depois deste falimento? Sou o que não fui, o que vai ficar calado."

(Guimarães Rosa – A terceira margem do rio)


O conto “A terceira margem do rio” é um dos mais densos e poeticamente engendrados da nossa literatura. Em seis páginas apenas, Guimarães Rosa consegue prender o leitor pela intensidade da matéria narrada, pela perspectiva humana que transcende o mero relato da cor local e pela consciência da forma reduzida ao essencial; ou como disse Julio Cortazar a respeito da boa realização da forma narrativa: “... tão secreto e voltado para si mesmo, caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário [...] um bom conto é incisivo, mordente, sem tréguas desde as primeiras frases”.

"Nosso pai era um homem cumpridor, ordeiro positivo; e sendo assim desde mocinho e menino, pelo que testemunhavam as diversas pessoas sensatas, quando indaguei a informação. "

Assim começa a Terceira margem do rio, e desta citação temos as primeiras revelações formais para leitura que ora se inicia, tentando descobrir, na estrutura formal do texto – este ser de linguagem – o impasse do narrador moderno diante da impossibilidade de retransmitir a experiência dos narradores tradicionais. O narrador desta saga familiar é um ser anônimo e sozinho, que carece da informação para encontrar o sentido da vida, através de suas lembranças.
O romance, ou seja, ainda, a narrativa moderna é um fenômeno da sociedade burguesa, uma convenção da escrita oposta à tradição oral e, segundo Benjamin, uma decorrência histórica dos novos modos de produção, entre eles - a imprensa. Uma ficção assinada e datada por um indivíduo, por uma experiência particular, sem a presença viva das várias vozes que compõem a narrativa tradicional. É do declínio da autoridade dessa experiência e de sua impossibilidade no mundo fragmentado da modernidade que se pode acompanhar, na estrutura do conto de Guimarães Rosa, o impasse de um narrador da convenção escrita, submerso num mundo de características arcaicas, ambiguamente dilacerado entre a “voz” da experiência paterna (já intransmissível) e o mundo familiar e comunitário, dos quais ele participa quase à revelia.
O narrador deste conto, já entrado nos anos e inominado, narra a posteriore dos fatos e através de uma dupla perspectiva: da vivência e convivência de seu pai e da sua. Mesmo assim, começa por dizer que narra de uma dupla ótica: a própria e a de testemunhas. Podemos então inferir, pelas marcas textuais, que a narrativa se processa no limite do coletivo, respaldado na tradição oral (testemunho de pessoas sensatas) e do individual (subjetividade de quem narra), não prescindindo, portanto, nem da lembrança dos “narradores anônimos”, nem de sua visão/recordação solitária. Com isto, o conto de Rosa retoma formalmente um dos problemas cruciais da narrativa moderna, segundo Benjamin e Adorno: “narrar um mundo que carece de totalidade, mas que apesar de tudo exige ser narrado em suas dobras interiores”. E o que é mais: arrancando da matéria bruta dos nossos sertões – através da técnica do monólogo reflexivo, ou “interior” – a universalidade do extravio humano e de sua experiência do mundo moderno.
Inicia-se, desta maneira, o “relato” de um narrador de primeira pessoa, que, embora no centro dos acontecimentos, se mantém anônimo. Essa estratégia do foco narrativo possibilita simular uma distância “épica”, uma pseudo-objetividade, que se diria impossível de conviver com o “drama” familiar do relato. Podemos ver, assim, traços de uma forma tradicional de narrativa, convivendo (e contaminada) pela subjetividade do narrador... que agora é produto de um mundo moderno convivendo simultaneamente com estruturas arcaicas.
Portanto, o fio narrativo principia falando de um acontecimento fora de toda a normalidade que sustenta o cotidiano, o prosaico, e se aproxima do “maravilhoso”, do transcendente: um dia (era uma vez...) o pai mandou aprontar uma canoa especial, de pau vinhático,

"Pequena, mal com uma tabuinha na popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte e trinta anos." (ROSA, p.27, grifos meus.)

Silencioso, sem nenhuma explicação, embarca na canoa artesanal e ganha o rio para uma demanda sem resposta, em similaridade com aquele imenso caudal de água silenciosa.

"O rio por aí se estendendo fundo, calado pra sempre. Largo de não se poder ver a forma da outra beira". (ROSA, p. 27, grifos meus.)

Afronta a resistência da mulher que diz numa sentença progressiva: “Cê vai, ocê fique, você nunca volte”. (ROSA, p. 27, grifos do autor). Morfologicamente, a redução inicial do pronome de tratamento, a forma sincopada, é significativa, pois vai do mais íntimo – e familiar à região – ao formal (o pronome você no sentido de forma, pouco usado nesse contexto regional. Adquirindo um tom impositivo e perfilhando os sentimentos que dominam a mulher, inculca na subjetividade do significado a sentença condenatória.
Está formada a base estrutural do conto: uma “viagem” sem objetivo e sem volta, que transcende o real:

"Nosso pai nunca voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia." (ROSA, p. 28, grifos meus.)

Ora, se a narrativa oral se funda em relatos presumivelmente verídicos, abonados na experiência coletiva, o narrador da “terceira margem”, desnuda, no tecido ficcional, o estatuto da mimese aristotélica, ou seja: narrar ou representar o possível “segundo a necessidade e a verossimilhança.” (Aquilo que não havia, acontecia). A esta altura, já sabemos que a narrativa moderna se funda na convenção da escrita, na convenção de um autor-narrador duplamente solitário e, enfim, de um leitor ensimesmado, cuja experiência fica circunscrita à sua leitura. Hypocrite lecteur, -, mon semblable, mon frère! Assim diz Baudelaire referindo-se ao novo leitor da modernidade.
Do ponto de vista da narrativa, o relato se configura como um grande monólogo interior que perfaz o fio da meada, ou ainda como “um monólogo infinito” segundo a expressão de Antonio Candido, referindo-se a Grande sertão: veredas, que “teria uma influência decisiva sobre a ficção posterior.”
O tecido ficcional, a trama propriamente dita, se inunda da permanente presença do narrador em busca de respostas que transcendam o meio contingente e prosaico, reforçando a demanda interior do indivíduo em meio ao tecido social. Assim se procede a relação entre o narrador e o pai, através da cumplicidade e da ambigüidade do primeiro. É o filho que alimenta a “doidera” do pai, colocando comida, às escondidas, nos ocos de pedra dos barrancos à margem do rio. Uma relação que toma a vida inteira do narrador (em similaridade com a “estranheza” do pai) sempre a “espiar” seu vai-e-vem , que não se via aportar em nenhuma das margens.
Neste ponto, a experiência paterna, que na narrativa tradicional se daria de maneira espontânea e através da presença física do narrador, transfere-se para o terreno do imaginário, da lembrança mediada pela escrita, reforçando a idéia de que, na modernidade, a experiência dos antepassados é já finita e sua presença se dá apenas como ficção.

"Mas, por afeto mesmo, sempre que às vezes me louvavam por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: - ‘foi pai que um dia me ensinou a fazer assim... ’ o que não era certo, exato, mas que era mentira por verdade." (ROSA, p. 30, primeiros grifos do autor e segundos meus.)

Impossível, no mundo contemporâneo, a lição épica dos narradores antigos tem sua contrapartida no isolamento e na subjetividade do narrador moderno; abolindo o empirismo das situações e ações, aloja-se agora no inconsciente dos personagens, na sua essência, na sua perplexidade, nos seus malogros e nas suas buscas interiores em relação ao mundo exterior. Neste sentido, o narrador do conto, situando-se no limite entre o arcaico e o moderno, transpõe para o entrecho narrativo a impossibilidade da tradição e a possibilidade da ruptura. Aloja em si a angústia de não conseguir trilhar o caminho indicado pelo pai, angústia que se refaz em indagações e sentimento de culpa. Ele é o parceiro solitário, ou a face moderna do pai, ou ainda a terceira margem de um rio, que tem duas margens lógicas e uma outra que é fabricada por palavras, ou seja: por sua narrativa.
Como já se abordou no início, essa “distância épica” faz com que o sujeito da enunciação suprima os nomes próprios, seu e dos familiares. É o narrador que assume, através do uso do possessivo, os vínculos com a família, que desta forma se tornam tênues, levando o drama do relato a ser percebida através de sua visão interiorizada dos fatos.

"Minha irmã se mudou com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no vagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu não podia querer me casar. Eu permaneci com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei – na vagação, no rio, no ermo – sem dar razão de seu feito." (ROSA, p. 30.)

A demanda do narrador se frustra na impossibilidade de resposta para o feito do pai, a explicação é interditada na própria narrativa:

"Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora o homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada, mais." (ROSA, p.31, grifos meus)

Deste modo, a pista para a resposta à sua demanda vem revestida pela indeterminação, - o disse-me-disse que andava de boca em boca da comunidade. A “morte do pai” já se anuncia através do esquecimento dos conhecidos e a recordação existe apenas para o narrador, no próprio ato de narrar:

"Sou um homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta culpa? Se meu pai sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio pondo perpétuo. Eu sofria já o começo da velhice – esta vida era só desmoronamento." (ROSA, p. 31)

O clímax da narrativa, seu momento crucial subverte a expectativa dessa longa vigília. Na tentativa de resolver o impasse – no limite em que se colocara – o narrador resolve tomar o lugar do pai na perpétua canoa: ou seja, resolve-se metaforicamente pela narrativa ancestral, plasmada na figura da viagem sem volta:

"Chamei umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz – Pai, o senhor está velho, já fez seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa ”... E assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo." (ROSA, pp. 31/2, grifos do autor))

No desenlace, assiste-se à impotência do narrador diante do gesto de assentimento do pai:

"Eu tremi profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... [...] Porquanto ele me pareceu vir: da parte do além." (ROSA, op. cit., p.32, grifos meus)

E finalmente, a impossibilidade final de a narração reconstruir a forma de um mundo finito:

"Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem depois desse falimento? Sou o que não fui, o que vai ficar calado."(ROSA, op. cit., p. 32, grifos meus.)

Assim, o desfecho do conto é testemunho de uma arte que não pode mais narrar o “real” na plenitude de antigamente. Por isso, o narrador recua de sua pretensão, ou do seu gesto, no quase final do conto e assume a ruptura como transcendência estética transformando a continuidade da experiência numa epopéia às avessas, ou numa “epopéia negativa”, no dizer de Adorno, na qual o herói, deixando a conquista do mundo exterior, radica no interior a riqueza da experiência: “Sou homem depois desse falimento? Sou o que não fui, o que vai ficar calado.” O silêncio do narrador, seu “falimento” é o momento crucial do romance moderno, mentor de sua temporalidade histórica. Por isso, o fim deste narrador será tão anônimo como foi a sua vida, mesmo referendando seu último desejo - tomar o “lugar” do pai - depois de morto. Do pai, sabe-se que “sumiu”, desapareceu sua aventura arcaica, sem artigo de morte, mas o filho terá um duplo silêncio: em vida e na morte humana, natural, sem sortilégios, como convém ao mundo moderno:

"Mas, então, ao menos, que, artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio." (ROSA, p. 32, grifos meus.)

É uma constante em Guimarães Rosa a técnica do monólogo e do relato como a representação das grandes indagações do ser humano face à sua contemporaneidade. No conto “O espelho” – constante em Primeiras estórias - o narrador inicia um “falso” diálogo com um interlocutor ilustrado, mas não presentificado: “Se quer seguir-me, narro-lhe não uma aventura, mas uma experiência, a que me induziram, alternadamente, uma série de raciocínio e intuições.”(grifos meus)
De igual forma processa-se o drama fáustico de Riobaldo em Grande sertão: veredas. Um longo monólogo sob a forma de um presumível diálogo, um grande relato no qual a experiência do narrador não é mais transmissível, porque feita de dúvidas, de hesitações, dialeticamente temporal como a história dos homens: “Existe é homem humano. Travessia.”
Portento, não se trata mais, no conto de Guimarães Rosa de comunicar uma experiência comunicável, mas uma vivência individual que passa a ser a única experiência possível no mundo moderno, ditada pela impossibilidade da partilha. Não é por acaso que o conto chama atenção por seu final inusitado. Essa demanda sem resposta, sem acabamento final, em que se ressalta a incomunicabilidade entre o pai e o filho, quando aquele se esvai em cumplicidade com o rio (se) pondo perpétuo.

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