Sobre o romancista, sua obra e sua crítica.
Em 1899, Machado de Assis publicou o romance Dom Casmurro, o último de sua famosa trilogia que inclui Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1891), os mais comentados de sua vasta obra composta dos romances da 1a fase, de seus contos, crônicas, teatro, além de uma obra poética de forma parnasiana que não teve a mesma ressonância de suas narrativas.
A essa altura seu reconhecimento como um grande ficcionista já tinha ultrapassado as primeiras e apressadas críticas, feitas principalmente por Sílvio Romero. Mesmo assim, durante muito tempo a crítica especializada não conseguia penetrar nas artimanhas engendradas por seus narradores e pelo móvel narrativo encoberto no enredo, discutindo apenas a camada mais aparente, tornando ingênua a leitura de seus romances, leitura mais das vezes equivocada; distante, portanto, da sagacidade com que Machado de Assis criava suas tramas ficcionais.
Foi Lúcia Miguel Pereira, crítica atuante no Rio de Janeiro, quem publicou em 1950 a primeira crítica favorável ao romancista, baseada nos aspectos estruturais do livro (fatores estéticos).
"O desajustamento entre Machado e os escritores do seu tempo provém, afinal, tanto da sua intrínseca superioridade como do fato de haver ele seguido o ritmo da vida política e social das classes dominantes, enquanto os outros se atrasavam, perdidos na busca do elemento típico. (...) Por isso é que Machado de Assis se pode chamar de realista. Sem preocupação de escola literária desde que se libertou do romantismo, ele observou, como ninguém entre nós, as criaturas em toda a sua realidade, dando a cada aspecto o justo valor, isto é, apreciando a todos com o critério relativo."
(Lúcia Miguel Pereira, op. cit, pp. 68/66)
O próprio Machado fez crítica literária em jornais cariocas. Em um texto chamado “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, ele observa a tendência de sua época pelo romântico tratamento da cor local; contrário a essa tendência estética, ele coloca o instinto de nacionalidade dentro de uma linguagem mais universalmente contemporânea, deixando as pistas para seus futuros críticos, como Lúcia Miguel Pereira:
"Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. (Sobre os romances). (...) o romance brasileiro, não menos o está (distante) de tendências políticas e geralmente de todas as questões sociais – o que não digo por elogio, nem ainda censura, mas unicamente para atestar o fato. Esta casta de obras conserva-se aqui no puro domínio de imaginação, desinteressada dos problemas do dia e do século, alheia às crises sociais e filosóficas. "
É justamente a escolha dos personagens pertencentes à burguesia agrária, já vinculada ao elemento urbano da capital do país, bem como os conflitos psicológicos que dão densidade a essas personagens (em especial a Capitu) que fazem da literatura de Machado de Assis um diferencial em relação a seu tempo. Os equívocos dos críticos anteriores a Lúcia Miguel Pereira durante muito tempo fizeram do personagem Dom Casmurro (ou Bento Santiago) a vítima das manhas de Capitu, terminando por constatar a infidelidade da protagonista feminina, sem direito à apelação. Só a partir da década de sessenta foi que surgiram as mais incisivas e aprofundadas críticas literárias sobre a ambigüidade discursiva do narrador e da estrutura narrativa de Dom Casmurro, através dos críticos Silviano Santiago, John Gledson e Roberto Schwarz. Como observa Silviano Santiago:
" Em resumo: os críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre Capitu, ou sobre a impossibilidade de se ter a verdade sobre Capitu, quando a única verdade a ser buscada é a de Dom Casmurro."
(Silviano Santiago, op. cit., p. 32.)
E John Gledson afirma:
"Seja qual for a “verdade” acerca do adultério, podemos considerar que o romance é um estudo sobre o ciúme de Bento e as condições que o produzem. Tais condições são, com efeito, idênticas àquelas que fizeram com que o casamento se realizasse. A fim de se casar com Bento, Capitu precisa manipulá-lo e dominá-lo, procedimento que, invertendo os papéis tradicionais do homem e da mulher, provoca ciúme e ressentimentos. Do ponto de vista psicológico, Bentinho é apenas um menino mimado, habituado a que lhe façam as vontades, e possui a incapacidade da criança mimada para compreender que os outros têm uma existência independentemente da sua, de modo que quando eles afirmam a independência, com é natural na ordem das coisas, essa afirmação lhe parece uma traição."
(John Gledson, op. cit., p. 12)
O ciúme de Bento e seu empenho em cercear a liberdade de Capitu é afirmado pelo próprio narrador:
"Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo tão cioso dela, não continuei a sê-lo apesar do filho e dos anos. Sim, senhor, continuei. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer; muita vez só a indiferença bastava. Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror e desconfiança."
"Daí em diante foi cada vez mais doce comigo; não me ia esperar à janela, para não espertar-me os ciúmes, mas quando eu subia via no alto da escada, entre as grades da cancela, a cara deliciosa da minha amiga e esposa, risonha como toda nossa infância. "
(Dom Casmurro, vol. , respectivamente caps.CXIII. e CXV.)
A partir de então, tem-se deixado de lado a crítica impressionista (baseada apenas na impressão do crítico-leitor sobre a obra), e se fixado na estrutura dos romances, com destaque para o foco narrativo e para a configuração dos personagens.
2. O narrador em Dom Casmurro.
Um dos trunfos de Machado de Assis para armar a trama do romance e mostrar a ambigüidade das ações humanas, ou sua psicologia, é justamente a escolha de um narrador de 1a pessoa e o uso do flash back, ou narração retrospectiva, usada pelo narrador-protagonista. Bento Santiago é o “dono da voz” e narra a posteriore seus amores de adolescência, finalizando por seu casamento com Capitu até o desenlace final. O narrador machadiano conduz o plano narrativo, daí ser providencial a “escolha” do romancista pelo viés da memória e pela voz do narrador de 1a pessoa, transmitindo a verossimilhança necessária (aparência de verdade) aos propósitos do narrador-protagonista que divide a cena com Capitu, uma vez que a voz dela é suprimida.
O narrador começa por explicar o título do livro, carregando na ironia a respeito de um companheiro de viagem que o importunava com uma conversa desinteressante e a leitura de versos seus. O rapaz terminou por apelidá-lo de Dom Casmurro, título irônico que ele acata com complacência e irônica superioridade.
"Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão.
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra que desapareceu. (...) O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência."
(Dom Casmurro, volume I, cap.II)
É interessante notar que as reminiscências de Bento Santiago, quando narra sua infância e seu relacionamento com Capitu, são organizadas pelo discurso de um bacharel em direito e ex-seminarista, homem instruído e culto, com uma bagagem intelectual que vai da citação dos clássicos da literatura universal, de Homero a Shakespeare, dos filósofos às citações bíblicas. Um tal discurso se apóia numa retórica bacharelesca, sinuosa e muito ambígua que transfere para os outros personagens critérios de valor que ele pretende inculcar no leitor, principalmente em relação a Capitu.
É através do agregado José Dias que vem a primeira “denúncia” sobre o perigo da má influência da personagem feminina. Bentinho ouve “atrás da porta” as insinuações do agregado. Defendendo a promessa de D. Glória de tornar o filho padre e exaltando o poder da Igreja Católica que “tem grande papel no Brasil”, José Dias lança a primeira semente contra Capitu.
"- Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido aos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.
- Não acho. Metidos nos cantos?
- É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase não sai de lá. A pequena é uma desmiolada;"
(Dom Casmurro, vol I, cap. III).
"Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, ‘olhos de cigana oblíqua e dissimulada’. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia e queria ver se se podiam chamar assim."
(Dom Casmurro, vol. I, cap. XXXII)
O discurso do narrador pode ser visto sob dois desdobramentos: em primeiro lugar ele “descobre” seu interesse por Capitu através de outros olhos, o que reforça a sua imagem de ingenuidade e boa fé. Depois, o julgamento das manobras de Capitu, da adolescência até o casamento, também é visto através do juízo de valor de outros personagens, a exemplo do agregado e da prima Justina. A linguagem dos olhos é também interessante de constatar: ora são os personagens que “vêem” Capitu, ora é Bentinho que batiza a amiguinha de “olhos de ressaca”, numa das mais belas e poéticas páginas sobre a beleza e o poder de Capitu. (capítulo acima). Ou ainda quando os olhos do narrador adulto “vêem” os olhos da mulher fixando o cadáver de Escobar, como se fosse os da viúva.
Enquanto vai tirando da memória uma série de justificativas que “coincidentemente” reforçam a imagem negativa de Capitu, Dom Casmurro vai se narrando, “ingenuamente”, como uma criatura dócil, tímida, insegura e fácil de se influenciar. É assim quando ele precisa do apoio de José Dias e das articulações de Capitu para não ingressar no Seminário. Ou ainda quando infantilmente sonha em invocar o poder do Imperador para livrá-lo da vida religiosa.
Um dos pontos altos do narrador é a função apelativa, aquela função da linguagem em que em que o autor da mensagem se dirige diretamente ao leitor, trazendo-o para dentro do texto, tornando-o cúmplice do narrador:
"Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolino, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não nos adiantemos; vamos à primeira parte, em que vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou."
(Dom Casmurro, vol I cap. X)
"A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos o abismo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo."
(Dom Casmurro, vol I, cap. CXIX)
Por tudo o que dissemos acima, não resta dúvidas de que Machado de Assis elaborou um narrador enganoso ou sedutor para tornar ambígua a trama romanesca, seja através da reminiscência de memória, que quase sempre é enganosa ou desfocada, seja através da linguagem sinuosa e das interferências do narrador que torna o leitor cúmplice de seus desejos mais íntimos, como o desejo de justificar seus ciúmes e suas atitudes em relação a Capitu e ao filho Ezequiel. É justamente sua habilidade como romancista que o faz ser considerado o maior escritor brasileiro, cuja literatura permanece sempre atual e reconhecida pelo público de outros países.
" Machado foi sem dúvida um “mestre”, como quer o título de um dos livros de critica (Roberto Schwarz, “A Master on the Periphery of Capitalisme”) um dos grandes escritores de todo o mundo. (...) Em 1990, apresentando uma nova edição das “Memórias Póstumas”, Susan Sontag se dizia ‘espantada ao ver que um escritor dessa grandeza ainda não ocupa o lugar que lhe cabe."
3. O enredo
O tema da infidelidade ou do triângulo amoroso é muito antigo na literatura e na história da cultura universal; portanto, quando levado para o âmbito da literatura, se não for muito bem trabalhado, pode se tornar um clichê, ou seja, a banalização do assunto, como muitas vezes é empregado pela mídia das novelas televisivas. Na literatura ocidental podemos ver exemplos em dois romances célebres: Madame Bovary de Gustave Flaubert, e O primo Basílio de Eça de Queiroz. Trata-se de enredos que envolvem infidelidades conjugais explícitas, cujos narradores de 3a pessoa são oniscientes, ou seja, sabem e narram tudo a respeito do comportamento de seus personagens de modo a não restarem dúvidas sobre seus atos. É assim com o drama dos adultérios da romântica Ema Bovary, como também da Luísa de Eça de Queiroz que cai nos braços do primo Basílio na ausência do marido. Se a trama dos dois romances realistas se assemelha à trama de Dom Casmurro, um fator formal os separa: narrando na 1a pessoa, Bento Santiago se vale de suposições, muitas delas inconfiáveis, para determinar a infidelidade de Capitu e desterrá-la até a morte, sem provas evidentes. A oscilação e a dubiedade do narrador, também chamado “inconfiável” por Roberto Schwarz e John Gledson, dão a nota moderna do romance e sua contemporaneidade acima do espaço e do tempo em que foi escrito: a corte fluminense e o século XIX.
Bento de Albuquerque Santiago é filho abastado da burguesia urbana do Rio de Janeiro, capital do Império, cujos bens provinham das relações escravistas que sustentavam a parcela dominante da oligarquia brasileira. Bento poderia dizer como Brás Cubas outro memorialista abonado que “teve a boa fortuna de não comprar o pão com o suor de seu rosto”.
"Minha mãe era uma boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para o Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs de ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se ficar na casa de Mata-cavalos..."
(Dom Casmurro, vol. I, cap. VII)
Desde pequeno estava destinado ao sacerdócio por conta de uma promessa da mãe. Ao crescer e já envolvido nos amores de Capitu, livra-se do Seminário deixando em seu lugar um rapaz pobre que pagará sua promessa, por meio de uma cômoda “substituição”, concedida pelo bispo. Do Seminário para a Faculdade de Direito é um pulo e ei-lo feito bacharel.
Todo esse arranjo é feito de idas e vindas, cujos artifícios eram pensados e articulados por Capitu e por José Dias, que se fez cúmplice do projeto. A Bentinho cabiam as hesitações, a obediência à vontade materna e a imaginação fértil:
"Ficando só, refleti algum tempo e tive uma fantasia. Já conheceis as minhas fantasias. Contei-vos a da visita imperial; disse-vos a dessa casa de Engenho Novo, reproduzindo a de Mata-cavalos... A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva rápida, inquieta, algumas vezes tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo. (...) A fantasia daquela hora foi confessar a minha mãe que não tinha vocação eclesiástica."
(Dom Casmurro, vol I., cap.XL)
"Daí o falar-lhe na vocação que se discutira naquela tarde, e que eu confessei não sentir em mim.
- Mas tu gostavas tanto de ser padre, disse ela. (...) Como eu buscasse contestá-la, repreendeu-me sem aspereza, mas com alguma força, e eu tornei ao filho submisso que era".
(Dom Casnurro, vol. I, cap. XLI)
Do lado da classe social de Capitu, a situação era bem diversa. Os comentários do narrador sobre Pádua e sua família, às vezes bem irônicos, nos faz saber que eles pertencem à vasta camada de funcionários públicos, situando-se entre os beneficiados pela ordem escravocrata e os escravos propriamente ditos. Vizinhos pobres de Dona Glória, mãe de Bentinho, eles eram acolhidos por uma relação paternalista, quase próxima da condição de agregados. Com a morte do marido, Dona Glória passa a exercer com mais força o papel de matriarca. Capitu pouco a pouco se agrega à família de Bentinho, na medida em que Dona Glória a acolhe como uma protegida.
Capitu é filha única desse casal. Na reminiscência de Dom Casmurro, ela nos é apresentada, nas linhas e entrelinhas do narrador, num jogo retórico de sutis insinuações, como uma criatura dissimulada, astuta e ambiciosa, uma mocinha à cata de ascensão social, aliás a única alternativa daquela sociedade em relação à mulher, ainda muito longe de um provável mercado de trabalho. Mais uma vez Bento dialoga amigavelmente com o leitor de forma a persuadi-lo do que diz:
"Como vês, Capitu, aos quatorze anos tinha idéias atrevidas, muito menos que as outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se sinuosas, surdas e alcançavam o fim proposto, não aos saltos, mas aos saltinhos."
(Dom Casmurro, vol. I, cap. XVIII)
Como interpretação de um contexto cultural vigente no Brasil do século XIX, que o texto reconstrói, vemos que as relações herdadas do sistema patriarcal e persistentes na nova ordem da burguesia urbana, impõe ao papel da mulher na sociedade condições no mínimo constrangedoras como ser alienado ao homem pela instituição do casamento; isto de um ponto de vista mais geral. Por outro lado, na situação particular de Bento, existe um homem de um status superior que faz ascender até si uma moça pobre, cuja única opção na partilha dessa classe era, obviamente, o casamento; donde se conclui, também, que Capitu não era totalmente vítima da situação sendo sua ambigüidade extremamente depurada, inclusive por sua forte personalidade, como deixa entrever em sua resistência silenciosa quando acusada e acuada por Bento. Ao ouvir do marido as dúvidas sobre a paternidade de Ezequiel, Capitu exige que tudo seja dito sem meias palavras:
"Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu, tão naturais ambas que fariam duvidar as testemunhas de vista de nosso foro. (...) Assim que, sem atender à linguagem de Capitu, aos seus gestos, à dor que a retorcia, a cousa nenhuma, repeti as palavras ditas duas vezes com tal resolução que a fizeram afrouxar. Após alguns instantes disse-me ela:
- Só se pode explicar tal injúria pela convicção sincera; entretanto você era tão cioso dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfiança. Que é que lhe deu tal idéia? Diga, - continuou vendo que eu não respondia nada – diga tudo; depois do que eu ouvi o resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu agora tal convicção? Ande, Bentinho, fale! Fale! Despeça-me, mas diga tudo primeiro.
- Há coisas que não se dizem.
- XQue não se dizem pela metade; mas já que disse metade, diga tudo.
Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto confusa, o porte não era de acusada. Pedi-lhe mais uma vez que não teimasse.
- Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação."
(Dom Casmurro, op. cit., cap. CXXXVIII)
O hábito de imitar as pessoas que Ezequiel possuía, principalmente em relação a Escobar, é o primeiro indício, mas sem imediata conseqüência. O momento crucial das dúvidas (ou ciúmes) de Dom Casmurro se dá no enterro de Escobar, que morre afogado, apesar de bom nadador:
" Enfim chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...
As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou as carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã."
(Dom Casmurro, cap. CXXIII)
As dúvidas de Bentinho recomeçam a partir justamente de um comentário de Capitu:
" -Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita? Perguntou-me Capitu. Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado do papai, não precisa revirar os olhos, assim, assim... "
(Dom Casmurro, cap.CXXI)
Deste momento em diante começa a prevalecer para Bento a semelhança do filho com Escobar e a ruína da relação com Capitu. O que torna mais intrigante neste narrador é observar que o mote das semelhanças já tinha acontecido antes, quando Capitu se acha cuidado da amiga Sancha doente e o pai desta chama a atenção de Bento para a grande semelhança entre Capitu e a mãe da amiga:
"Gurgel, voltando-se para a parede da sala, onde pendia um retrato de moça, perguntou-me se Capitu era parecida com o retrato.
Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a opinião favorável do meu interlocutor, desde que a matéria não me agrava, aborrece ou impõe. Antes de examinar se efetivamente Capitu era parecida com o retrato, fui respondendo que sim. Então ele disse que era o retrato da mulher dele, e que as pessoas que a conheceram diziam a mesma cousa. Também achava que as feições eram semelhantes, a testa e principalmente os olhos. Quanto ao gênio, era um; pareciam irmãs. (...) Na vida há dessas semelhanças assim esquisitas."
(Dom Casmurro, cap. LXXXIII)
Machado de Assis reforça a ambigüidade das dúvidas e posteriores certezas do narrador ao referir este simples fato, aparentemente destituído de valor para a trama romanesca. Procedimento igual quando Bento se refere ao hábito do pequeno Ezequiel de imitar pessoas, além de Escobar. Cumpre ao leitor atentar para as armadilhas que o escritor, por trás do narrador, vai semeando no texto.
"O fato é que Bento acha o filho mais e mais parecido com o outro. Afasta-se de Capitu e se torna Casmurro. Quer matar a mulher, o filho e a si mesmo. A certa altura para buscar distração vai ao teatro, onde vê Otelo. Em lugar de entender que os ciúmes são maus conselheiros e as impressões podem trair, Bento conclui de forma insólita: se por um lencinho o mouro estrangulou Desdêmona, que era inocente, imaginem o que eu deveria fazer a Capitu que era culpada!"
(SCHWARZ, Roberto. “A poesia envenenada ..., op. cit., p 15.)
Não mata a mulher nem o filho, mas os desterra para Paris, onde Capitu falece anos depois; deseja ao filho adulto que a lepra lhe faça companhia; não veio a lepra, mas uma febre tifóide que o matou nas suas andanças arqueológicas.
4. Personagens principais
Sobre Dom Casmurro muito já foi dito aqui e alhures e nos últimos anos há uma vasta bibliografia a seu respeito, desde que o interesse da crítica deslocou-se da sumária condenação a Capitu para a observação do comportamento de Bento Santiago, que é afinal protagonista e narrador, ou como quer a teoria da literatura: um narrador-protagonista. Capitu é seu par feminino e, podemos dizer, sua antagonista (é assim que Dom Casmurro a vê quando desenrola o fio de sua vida, do meio para o fim). Fiquemos com duas descrições, dois pontos de vista bem distintos. O primeiro é de Alfredo Pujol, escrito em 1917, dezoito anos após a publicação de Dom Casmurro; reflete bem o moralismo da cultura patriarcal brasileira do início do século;
"Passemos agora a Dom Casmurro. É um livro cruel. Bento Santiago, alma cândida é boa, submissa e confiante, feita para o sacrifício e para a ternura, ama desde criança a sua deliciosa vizinha. Capitolina – Capitu, como lhe chamavam a família. Esta Capitu é uma das mais belas e fortes criações de Machado de Assis. Ela traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela, por assim dizer, instintiva e talvez inconsciente. (...) Capitu engana-o com o melhor amigo, e Bento Santiago vem a saber que não é seu o filho que presumia do casal. A traição da mulher torna-o cético e quase mal."
Em seguida, vejamos o que diz muito recentemente o já citado crítico Michael Wood, da Universidade de Princeton:
"A situação configura-se mais claramente em “Dom Casmurro”, cujo narrador, Bento Santiago, está tentando reconstruir sua vida, alcançando apenas o que ele mesmo reconhece como simulacro. Bento é um narrador mais inconfiável que Brás Cubas. (...) Mas o texto que ele escreve não é estritamente ambíguo, e sim indeterminado. Bento é suficientemente tolo e obnubilado para ser traído, além de suficientemente vaidoso para inventar o adultério da mulher a partir do nada. Está convencido de sua própria história: “Uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me...”
(Michael Wood, New York Review of Books, julho de 2002.)
A propósito de Capitu, Roberto Schwarz, com base no chão social, ou na história da nossa cultura, analisa o comportamento de Bento Santiago como um legítimo representante da sociedade patriarcal escravocrata, que o crítico qualifica, com propriedade, de obscurantista; ou seja, uma sociedade distanciada do progresso do Século das Luzes, sociedade cuja economia era gerada pelo trabalho escravo. Na qualidade de abastado herdeiro, Bentinho dava-se ao luxo de sonhar, de fantasiar e esperar que os outros decidissem sua vida. Capitu, ao contrário, era filha de obscuro funcionário público, pragmática, objetiva e qualificada por Schwarz de espírito esclarecido, mais em conformidade com as luzes do progresso:
"Capitu dirige a campanha do casalzinho com esplêndida clareza mental, compreensão dos obstáculos, firmeza – qualidades que faltam inteiramente ao seu amigo."
(Roberto Schwarz. A poesia envenenada..., op, cit., p.14)
E sobre o to be or not to be do adultério da personagem feminina, Schwarz relativiza o assunto dizendo:
"Em suma, não há como ter certeza da culpa de Capitu, nem da inocência, o que não configura um caso particular, pois a virtude certa não existe." (op. cit., p. 16, grifo do autor)
4.1. Secundários
Como personagens secundários, sem dúvida o mais interessante é o agregado José Dias, chamado em várias resenhas e criticas como o “homem dos superlativos”, pela maneira empolada de adular “seus superiores”. José Dias é o protótipo do dependente (ou personagem típica) que se agrega a uma família rica da ordem patriarcal, vivendo parasitariamente de prestar e de receber favores. Dom Casmurro dedica-lhe, logo no começo, dois capítulos – “Um dever amaríssimo” e “O agregado”, onde descreve seu aspecto bajulador com um virtuosismo, ao qual não falta também uma fina e maldosa ironia.
"Era magro, chupado, com um princípio de calva; teria os seus cinqüenta anos. Levantou-se devagar com o passo vagaroso de costume, não aquele vagar arrastado dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um dever amaríssimo! " (Dom Casmurro, cap. IV).
Os outros personagens não têm tanto relevo, a não ser Escobar o hipotético rival. Prima Justina uma meio agregada, e os tios representantes dos poderes eclesiástico e judiciário, além da matriarca D. Glória representam classes sociais daquela sociedade.
5. Tempo e Espaço
Rio de Janeiro, capital do Império, cujo imperador D. Pedro II era voltado aos estudos humanísticos, às artes e mesmo aos progressos da ciência. Admirador dos princípios da Ilustração, ou Iluminismo, conhecedor da Europa, principalmente da França, da Grécia e do Oriente Médio, D. Pedro II convivia com a extrema contradição de governar um país escravocrata, cujos latifundiários sustentavam a economia e dominavam a política do país, em completo descompasso com as idéias liberais advindas da Revolução Francesa de 1789, que o Imperador adotara para consumo externo.
"Como é sabido, éramos um país agrário e independente, dividido em latifúndios, cuja produção dependia do trabalho escravo por um lado, e por outro do mercado externo. (...) Além do que, havíamos feito a Independência há pouco, em nome das idéias francesas, inglesas e americanas, variadamente liberais, que assim faziam parte de nossa identidade nacional. Por outro lado, com igual fatalidade, este conjunto ideológico iria chocar-se com a escravidão e seus defensores, e o que é mais, viver com eles".
Tempo e Espaço no romance estão em perfeita sintonia. Isto equivale dizer que tanto o tempo narrado como o espaço onde se desenrola a trama se passam na segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro. Não há descrições detalhadas dos interiores das casas, das ruas e dos salões da burguesia fluminense; mesmo porque Machado de Assis não concordava com o tipo do romance realista que descrevia minuciosamente os ambientes; preferia antes ressaltar os aspectos do convívio social e familiar e o comportamento psicológico dos personagens. É próprio Machado quem marca sua posição numa crítica que escreve para O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, incluído no volume III de sua Obra completa:
"O Sr. Eça de Queiroz de Queiroz é um fiel e aspérrimo discípulo do realismo propagado pelo autor do Assomoir (Émile Zola). (...) Pois a nova poética (...) só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha. ( Vol. III, pp. 903/4)"
Fica claro, então, que Machado privilegia o tempo interior, ou seja, as ações e reações íntimas dos personagens, diferente do convencional romance realista que preferia mais a objetividade das ações e a impessoalidade dos personagens. Mais afastado ainda estava da estética naturalista, que agregou-se ao romance realista, cujo representante máximo foi o francês Émile Zola e cujo romance La Faute de l´Abbé Mouret ( A falta do Padre Mouret) influenciou fortemente “O crime de Padre Amaro, de Eça de Queiroz e os romances de Aluísio de Azevedo, no Brasil. O Naturalismo na literatura deriva-se do realismo, mas emprega fortemente as teorias cientificistas da hereditariedade determinista e da filosofia positivista social e de Auguste Comte.
Linguagem/Estilo
"(...) o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam e urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem..."
Memórias póstumas de Brás Cubas
Este trecho do romance é dito pelo narrador Brás Cubas, mas poderia ser, igualmente, dito pelos vários narradores de Machado de Assis, inclusive o Dom Casmurro. Na literatura brasileira, seu estilo é inconfundível. Daí advém o que os estudiosos chamam de genialidade e nós, leitores comuns, podemos falar de charme e sedução. Senão vejamos: Machado emprega no trecho acima duas maneiras de atrair o leitor, usando já naquele tempo duas funções da linguagem, que só no século vinte a Lingüística estudaria e classificaria: A FUNÇÃO METALINGÜÍSTICA, também chamada de METALINGUAGEM e A FUNÇÃO APELATIVA, também chamada de APELO.
A primeira explica a significação da palavra e está ligada ao CÓDIGO da Língua; seu uso na Literatura “explica” a forma ou o estilo usados. É isso o que Machado de Assis, na pele do narrador Brás Cubas, fez no texto acima: “este livro e o meu estilo são como os ébrios...”. A Função Apelativa é dirigida ao Destinatário pelo Remetente. Desta função já falamos antes, com respeito ao narrador. Machado de Assis usa largamente esta função toda vez que se dirige ao leitor nas suas inúmeras digressões (desvio momentâneo do que se fala ou escreve).
Outra figura de Estilo muito usada por Machado é a INTERTEXTUALIDADE, uma espécie de diálogos entre textos: ou seja, o uso de citar textos da literatura ou da cultura universal como elementos da própria narração. No caso de Machado, são flagrantes os exemplos, quer sejam literários, filosóficos, bíblicos ou históricos. É bom frisar que não são meras citações que demonstrariam apenas a erudição do autor, mas tratam-se de chaves para compreender a sinuosidade e as artimanhas do enredo, como, por exemplo, a citação que ele faz de Otelo, usando a tragédia de Shakespeare para justificar a sua certeza da infidelidade de Capitu. Essas citações são “manipuladas” quase sempre, e não podem ser vistas do mesmo modo como são empregadas no contexto do original. Assim, ele cita Homero, Camões, Montesquieu em francês, o Eclesiaste no capítulo final, sempre com algum propósito.
Além disso, a IRONIA está bem presente em quase cada linha do seu texto, como essa sua provocação: “...o maior defeito deste livro és tu, leitor.”
Sobre a LINGUAGEM, ela é típica do bem escrever do século XIX, aquilo que chamamos de linguagem castiça (pura) com respeito ao vocabulário e à sintaxe. Alguns termos se acham superados pela própria dinâmica histórica da língua, outros são específicos de usos próprios daquele tempo: mas nada impede que um bom leitor ou os recorde de outras leituras, ou os entenda pelo sentido. Antonio Candido, um dos maiores críticos do país, sintetiza assim sua escrita que sugere,
"(...) o todo pelo fragmento, a estrutura pela elipse, a emoção pela ironia, e a grandeza pela banalidade. (...) E o mais picante é o estilo guindado e algo precioso com que trabalha, o que se de um lado pode parecer academismo, de outro sem dúvida parece uma forma sutil de negaceio, como se o narrador estivesse rindo um pouco do leitor. A sua técnica consiste essencialmente em sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida (como os ironistas do século XVIII); ou estabelecer um contraste entre a normalidade social dos fatos e a sua anormalidade essencial; ou sugerir, sob aparência do contrário, que o ato excepcional é normal e anormal seria o fato corriqueiro. Aí está o motivo de sua modernidade, apesar de seu arcaísmo de superfície."
segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
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Um comentário:
Moema,
gostaríamos de usar a imagem do rio, que aparece aqui em seu blog, em uma publicação.
A foto é de sua autoria?
Como podemos fazer para consegui-la?
Muito obrigada,
Ana
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