quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

O Contexto Social Como Um Problema de Forma Literária

Um dos problemas que mais afligiram a nossa literatura foi justamente o de enfrentar a filiação aos modelos estrangeiros, sem com isso cair na cópia do original, ou na teoria da dependência de país colonizado. Tal problema constituiu-se, positivamente, ao longo de nossa história literária, inquietando tanto os nossos escritores como os críticos da produção ficcional brasileira. Essa hesitação entre o ser e o não ser estabeleceu-se, principalmente, desde os meados do século XIX, permanecendo até hoje sob diferentes indagações, embora já bastante atenuadas devido às experiências dos textos modernistas e pós-modernistas.
É sabido que desde o Romantismo – a fase considerada da “maioridade” de nossa literatura – a busca da identidade nacional e a afirmação da nacionalidade freqüentaram tanto as produções literárias como a crítica especializada da época. Hoje, qualquer estudante do curso de Letras sabe que José de Alencar, Gonçalves dias ou Castro Alves, entre outro dos nossos românticos, se empenharam em dotar suas obras dessa feição nacionalizante e dessa afirmação de país novo, fixando as cores tropicais como originalidade da incipiente nação. Essa busca da identidade nacional contribuiu, com excessos, para a noção de um ufanismo, ora ingênuo ora desbragado, que tanto marcou e – convenhamos – ainda marca a mentalidade do país. Em 1908, o Conde Afonso Celso – mineiro de boa cepa – escreveu o livro Porque me ufano do meu país, com muito sucesso entre a elite letrada e a intelectualidade brasileira. Nele está um bom exemplo de um ufanismo ingênuo e bastante tendencioso das mazelas de nossa colonização. Um rápido olhar no seu índice composto de 42 itens nos dá a medida desse desmedido orgulho. [1] Sobre a escravidão, o Conde Afonso Celso argumenta em favor da positividade do tratamento que se dava ao escravo e de como sua libertação foi feita de maneira “honrosa”:

Se é exato que o Brasil se demorou a abolir a escravidão, não menos certo que em parte alguma a questão foi solvida de modo mais inteligente e honroso.
Não nos deve envergonhar o fato de havermos mantido a maldita instituição. Quase todos os povos o (sic) praticaram.[2]

Na segunda metade do século XIX, a crítica literária, ainda tateante, foi marcadamente de feição nacionalista, na tentativa de dotar o país de sua identidade nacional pós independência.Tanto Sílvio Romero como Araripe Júnior e José Veríssimo laboraram na crítica da literatura e da cultura. O primeiro deles antipatizava com a ficção de Machado de Assis por achá-la impregnada da influência dos romances ingleses. A certa altura de sua História da literatura brasileira ele diz:

"O estilo de Machado de Assis não se distingue elo colorido, pela força imaginativa da representação sensível, pela variedade do vocabulário. [...] O nosso romancista não tem grande fantasia representativa, Em seus livros de prosa, como nos versos, [...] falta completamente a paisagem, falham as descrições, as cenas da natureza, tão abundantes em Alencar e as da história da vida humana, tão notáveis em Herculano e em Eça de Queiroz. [...] O estilo de Machado de Assis é a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivace, nem rútilo, nem grandioso, nem eloqüente. É plácido e igual. Uniforme e compassado. Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente, do vocabulário e da frase. Vê-se que ele tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da linguagem [...} Machado de Assis repisa, repete, torce e retorce tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que deixa-nos a impressão de um tal ou qual tartamudear."[3]

Por aí se vê que a crítica de Sílvio Romero a respeito do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas, se detém em dois aspectos da ficção machadiana – segundo ele, negativos. Justamente dois aspectos que elevaram o romancista à categoria de um dos maiores ficcionistas da nossa literatura, ou seja: a superação da cor local ( ou a idéia estritamente nacionalizante) e o trabalho interno da forma, irônica, implícita e perspicaz, flagrando as contradições da burguesia fluminense, revelado no comportamento de suas relações. Justamente são esses aspectos que Sílvio Romero compara à limitada linguagem do tartamudo, ou gago.
Outro exemplo interessante de explicação para o ufanismo no nosso comportamento cultural nos vem de Araripe Júnior. Segundo ele, no primeiro século de nossa colonização, o colonizador se vê tomado, ou melhor, vampirizado pela influência da terra tropical, produzindo no descendente europeu uma regressão, ou um “desbaratamento estético e moral” nas camadas civilizadas dos portugueses, ao atravessarem o Atlântico e fixarem seu habitat na América do Sul. A esse efeito, o crítico chama de obnubilação brasílica: [4]

"Qual foi o sentimento que se gerou no português logo que se sentiu abandonado às suas próprias forças no solo americano? Qual a nova direção que tomaram suas faculdades estéticas em conseqüência dessa queda psíquica, ou para exprimir-me melhor – dessa regressão ao tipo mental inferior, por desagregação da placenta européia? Nessas condições o colono e o aventureiro, quando mais se afastavam da costa e dos pequenos núcleos de segurança, mais se animalizavam, descendo à escala do progresso psicológico." (ARARIPE – Gregório de Matos, pp. 310 a 312, op. cit.)

É clara a influência do meio segundo as teorias deterministas e evolucionistas da época (meio e raça propagadas por Darwin e Spencer) na elaboração de Araripe Júnior. Aliás, a filosofia disseminada por Tobias Barreto, na Escola do Recife, impregnava toda essa geração de intelectuais. Curiosamente, ao mesmo tempo que ele vê uma positividade na “obnubilação” do português, rendendo-se à terra brasileira incivilizada, credita este efeito ao “tipo mental inferior”. A originalidade da crítica de Araripe Júnior fica por conta de uma certa inversão de valores. A crítica brasileira da época, por estar imbuída dessas teorias, realçava o aspecto de dominação européia sobre os primitivos habitantes da terra e esmiuçava os textos dos primeiros viajantes em que era visível o discurso de estranhamento e de preconceito (com raras exceções) pelos meios e costumes dos autóctones e o crédito ao tom de superioridade cultural dos autores. Araripe opera uma inversão quando maximiza a influência da terra sobre o comportamento secular, civilizado e cultural, do português, a ponto de este se ver tomado por uma “animalização”:

"Nessas condições o colono e o aventureiro, quanto mais se afastavam da costa e dos pequenos núcleos de segurança, mais se animalizavam, descendo à escala do progresso psicológico." (ARARIPE, Gregório de Matos, p. 311, grifos meus)

Bem contados os argumentos, o crítico aproximava-se, na verdade, da teoria do atavismo, mas como uma inversão no mínimo original para a época. Os antropólogos da linha ariana empregavam o conceito de atavismo para as raças ditas “inferiores”. Sendo assim, um núcleo populacional que permanecesse longe da influência civilizatória, quando posto em contato com essa mesma influência, entraria em conflito e regrediria de uma relativa pacificidade aos instintos mais bárbaros de seus ancestrais. Euclides da Cunha, embora com vista de longo alcance, em não poucos momentos de Os sertões, analise por esse prisma o comportamento dos sertanejos e as vicissitudes de Canudos.
Em Araripe Júnior é a própria raça “superior” que se vê degradada, animalizada em contato com a terra tropical e seus habitantes. Do ponto de vista cultural, envolvendo a estética e a religiosidade européias, a metáfora do “obnubilamento”, contida no sol dos trópicos, também produz uma cegueira regressiva:

"É assim que no próprio Anchieta vemos o misticismo diluir-se em um curioso naturalismo e a sua teologia transformar-se genialmente em fetichismo para realizar a obra de catequese dos índios." (ARARIPE, Gregório de Matos, p. 311)

Dessa maneira, o teatro de Anchieta que, via de regra, é visto como uma obra de inteligente interculturação entre os padrões estéticos, religiosos e morais da civilização ocidental e a cultura “bárbara” dos primitivos habitantes (levando-se em conta a manipulação ideológica da ação colonizadora) é analisado por Araripe como uma caída para o naturalismo fetichista, uma mística “genialmente” diluída pelo fetiche. O outro lado – a barbárie – é contemplada com o elogio implícito à natureza ímpar que vence a civilização. Sendo vencida, a parte civilizada – apesar de degradada – torna-se paradoxalmente engrandecida pela natureza dionisíaca e soberana, da qual é vítima.. É assim que se entende o fetichismo genial de Anchieta. O discurso de Araripe não é, pois, simplesmente unívoco, e sim dialeticamente ambíguo.
Pode-se dizer que a metáfora do obnubilamento concorreu e coincidiu com outros discursos, ficcionais e não ficionais, como um dos pontos de partida para o entendimento das teses do ufanismo, do nacionalismo, da antropofagia oswaldiana e de todo o movimento tropicalista que influiu na história da cultura e da literatura brasileira, com seus pontos altos e suas aterrissagens forçadas, com sua ideologia e sua contra-ideologia. 5 Por trás de quase quatro séculos do início da colonização, as mudanças ocorridas no organismo social dos países desenvolvidos – e que se refletem majoritariamente no campo sócio-econômico do nosso país – são quase sempre postas em confronto (vantajoso para nós) com o esplendor do sol e a riqueza da terra.
Falei no início da dificuldade de enfrentarmos nossa filiação à cultura européia e de como isso gerou e gera ainda um constrangimento até hoje apreensível nos nossos meios culturais e acadêmicos. Se estou debatendo o problema é no intuito de delinear os pontos polêmicos e de apontar uma linha crítica que tenta superar, dialeticamente, este mal-estar. E por falar em dialética, vejamos os pontos de vista críticos de Antonio Candido, o qual opera justamente no confronto entre dois pontos de vistas aparentemente opostos que é o solo social e a forma estética; ou ainda como se costuma dizer: o contexto e o texto literário. Com vistas à superação deste surrado antagonismo, Antonio Candido trabalha com um modelo de análise materialista do texto ficcional.
Em vários momentos de sua crítica ele constrói um ponto de vista teórico baseado na dependência e na superação de nossa literatura, mediante o estudo da forma, na prosa e na poesia. Indica ainda os dois fenômenos que pontuaram as manifestações literárias no país, chamados por ele de cópia e rejeição. O primeiro fenômeno se manifesta no estrito servilismo aos modelos estrangeiros, característico de um “país novo” e da sua “consciência amena do atraso”. 6 O segundo fenômeno, o da rejeição, manifesta-se nos anos seguintes à proclamação da República, em que se rejeitaria o pai colonizador no afã da maioridade política e cultural.

Em ambos os casos, o crítico registra a ambivalência de procedimentos, que, vistos de um certo ângulo, podem ser complementares. Dessa maneira, a rejeição, que se materializaria em certa produção regionalista e pitoresca, ainda assim estaria na dependência daquilo que os países desenvolvidos esperavam do nosso atraso, pois “insinuando um regionalismo que, ao parecer afirmação da identidade nacional, pode ser na verdade um modo insuspeitado de oferecer à sensibilidade européia o exotismo que ela desejava por desfastio; e que assim se torna forma aguda de dependência na independência” (CANDIDO, Literatura e subdesenvolvimento, p. 157)
A superação destas duas tendências pode ser observada a partir dos romances de 30, os chamados “romances do nordeste” cujo conteúdo sócio-cultural já expressariam a consciência do subdesenvolvimento, “... por meio da tensão entre o dado local (que se apresenta como substância da expressa) e os moldes herdados da tradição européia (que se apresentam como forma da expressão)” 7 retomando, inclusive, a tradição romanesca de Machado de Assis naquilo que ela tem de mais crítica.
Antonio Candido chama de uma conduta dialética esse processo que rege os nossos movimentos entre o localismo e o cosmopolitismo. Segundo ele,

"O intelectual brasileiro, procurando identificar-se a esta civilização, se encontra todavia ante particularidades de meio, raça e história, nem sempre correspondentes aos padrões europeus que a educação lhes propõe, e que por vezes se elevam em face deles como elementos divergentes, aberrantes. A referida dialética e, portanto grande parte de nossa dinâmica espiritual se nutre desse dilaceramento, que observamos desde Gregório de Matos no século XVIII, até o sociologicamente expressivo “Grito imperioso de brancura em mim” – de Mário de Andrade – que exprime sob a forma de um desabafo individual, uma ânsia coletiva de afirmar componentes europeus da nossa formação." (Literatura e cultura, p. 110)

Essa dialética dilacerada ou constrangida que, mais uma vez, assinala a ambigüidade da dependência, também é salientada por Roberto Schwarz, em Oswald de Andrade, na conhecida frase de seu Manifesto Antropófago – Tupi or not tupi, that is the question – ou seja como diz Schwarz a respeito dessa involuntária dependência.: “...a busca da identidade nacional passando pela língua inglesa, por uma citação clássica e um trocadilho – diz muito desse impasse.” 8
Em vários de seus trabalhos críticos, Antonio Candido retoma objetivamente a questão, construindo a superação do problema da cópia e da originalidade através da análise detalhada da organização da obra, em que o contexto se materializa em forma. É claro que esta crítica materialista do texto literário (ainda chamada, muitas vezes e desfavoravelmente, de crítica de esquerda) comporta seus riscos. Um dos mais evidentes é a falta de mediação estética – esta sim muito importante – entre o texto e o contexto.
Por outro lado, a prática da análise formal das obras – praticada pelos formalistas e, principalmente, pelos estruturalistas – é bem mais fácil e confortável para o crítico.

Ao prender o texto nas malhas da forma, o crítico estruturalista lida apenas com significantes textuais, com determinadas constatações formais e mecânicas; ou seja ainda: lida com abstrações, uma vez que a relação do material lingüístico com o dado externo, do qual ele parte, é posta de lado com uma evidente tomada de posição aistórica.
Antonio Candido dá conta destes dois riscos e explica seus entraves, apontando a superação deles:

"... antes procurava-se mostrar que o valor e o significado de uma obra dependiam de ela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que este aspecto constituía o que ela tinha de essencial. Depois, chegou-se à posição oposta, procurando mostrar que a matéria de uma obra é secundária, e que sua
importância deriva das operações formais postas em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social, considerado inoperante como elemento de compreensão. " Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava os fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.” ( Crítica e sociologia. Literatura e sociedade, op. cit. p. 04.)

No seu texto crítico - A dialética da malandragem - 10 Antonio Candido formaliza a integração do contexto ao texto literário, ao analisar o romance de Manuel Antônio de Almeida – Memórias de um sargento de milícias. O crítico define o ponto de vista estrutural da obra a partir dos elementos que a compõem, assinalando uma representação do Brasil-Colônia, na primeira metade do século XIX, Assim, ele apreende um movimento que vai da “ordem à desordem”, configurando o universo da sociedade brasileira daquele tempo, entre o hemisfério constituído pela precária ordem institucional dos oficiais de Justiça, dos meirinhos, do clero e da própria milícia, protagonizada pelo Major Vidigal, e o hemisfério da boêmia, dos terreiros de feitiçaria, dos amores clandestinos e, enfim, daqueles que se colocavam à mercê das sansões do Rei. Antonio Candido demonstra como a estrutura do romance faz com que estes dois pólos – o da ordem e o da desordem – transitem de um para o outro, através de seus personagens, compondo o “mundo sem culpa” bem característico de uma, sociedade na qual uns poucos livres trabalham e os outros flauteiam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificências, da sorte ou do roubo miúdo [...] com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX. (Dialética da malandragem, op. cit., pp. 44/45)

Ainda em outro lugar trabalho chamado de Cortiço à cortiço , ele compara os desdobramentos estruturais do naturalismo francês, através do romance L´Assomoir, de Zola e O cortiço de Aluísio de Azevedo. E aí fica patente como o modelo importado, que ele define como forma da expressão, torna-se um modelo diferenciado através daquilo que ele define como a substância da expressão. Ou seja, a matéria brasileira, sua organização sócio-cultural construindo uma forma até certo ponto diferenciada do modelo francês do qual ele partiu, por meio da fidelidade ao contexto.
Assim, ele define o resultado da análise que se volta para o “problema da filiação de textos e de fidelidade aos contextos”, dizendo que “ao mesmo tempo Aluísio quis reproduzir e interpretar a realidade que o cercava, e sob este aspecto elaborou um texto primeiro.Texto primeiro na medida em que filtra o meio; texto segundo na medida em que vê o meio com lentes tomadas de empréstimo.” 9


O trabalho crítico revela alguns dados estruturais diferenciados entre os dois romances. Partindo de uma ideologia que determinava o homem como produto, de modo absoluto, as duas narrativas se estruturam em torno de cortiços. Mas Antonio Candido mostra a diferença entre o cortiço do romance francês e o do brasileiro. Em Zola, a ação se passa quase que inteiramente em um bairro operário de Paris, sem que haja interpenetração entre a classe burguesa e a proletária, evidenciando o dado de um contexto em que as classes eram realmente diferenciadas, inclusive em seus espaços. Em Aluísio,

Ao contrário de L´Assomoir, trata-se de uma história de trabalhadores intimamente ligados ao projeto econômico de um ganhador de dinheiro, por isso o romancista pôs ao lado da habitação coletiva dos pobres o sobrado dos ricos, meta visada pelo próprio João Romão. [...] A originalidade do romance de Aluísio está na coexistência íntima do explorado e do explorador, tornada logicamente possível pela própria natureza elementar da acumulação num país que economicamente ainda era semicolonial. (De cortiço a cortiço, p. 126)

Ainda falando dos espaços diferenciados e de como eles interferem na lógica dos respectivos romances, o crítico assinala que:

O cortiço francês em L´Assomoir é segregado da natureza e sobe verticalmente com seus seis andares na paisagem urbana espremida pela falta de terreno. O cortiço brasileiro é horizontal ao modo de uma senzala, embora no fim, quando o proprietário progride, adquire um perfil mais urbano e um mínimo de verticalização nos dois andares de uma parte nova da vila. Além disso, cria frangos e porcos, convive com hortas, a árvore e o capim invade terrenos baldios e vai para o lado da pedreira que João Romão explora.
Ligado à natureza, que no Brasil ainda era presença a ser domada, ele cresce, se estende, aumenta de volume e é conseqüentemente tratado pelo romancista como realidade orgânica, por meio de imagens orgânicas que o animam e fazem dele uma espécie de continuação do mundo natural. (De cortiço a cortiço, p. 134)

Além do mais, Antonio Candido revela um dado novo da composição do romance que, numa leitura mais de superfície, sempre é visto a partir do ponto de vista da oposição entre o português explorador e o brasileiro explorado. O crítico recoloca a questão de um ponto de vista mais profundo e estrutural, ou seja, o modo como o capital se desenvolve num país de economia periférica e a maneira como ele se assume, transformando-se em um dos princípios ordenadores do entrecho romanesco.
Desta maneira, o ponto de vista de muitos críticos, que enxergavam apenas o confronto entre o português explorador e o brasileiro explorado, numa análise dualista, se desfaz quando se constata as relações ordenadoras do romance. Roberto Schwarz, comentando a originalidade deste trabalho de Antonio Candido, define o ponto de vista a que chegou o último:

João Romão é um taverneiro português, fanaticamente acumulador, que não tem medo de trabalhar pesado, de se privar de tudo, de roubar o que for possível, ou de amigar-se com uma escrava, a quem usa de todas as maneiras. Aos poucos põe de pé um cortiço, onde explora indistintamente brasileiros e portugueses, brancos e negros, até ficar rico e entrar para a sociedade apresentável. O enriquecimento, perseguido com determinação alucinada, confere ao romance uma linha central de grande consistência e nitidez. Em sentido óbvio, esta decorre da motivação ou personalidade de João Romão. Mais profundamente, o crítico nota que ela apreende, pela primeira vez na literatura brasileira, o ritmo de acumulação do capital, nas condições peculiares do país. 10

Assim, posta de lado a noção da cópia e do original, vemos que o problema literário reside no âmbito que estrutura o projeto ficcional de uma determinada obra. Cabe ao crítico desentranhar e reordenar sua base formal, sempre atento aos vários signos que mobilizam o discurso social, ou ainda o contexto, e assim tornar possível a originalidade de sua crítica dentro do espetáculo caleidoscópio da cidade.
Levando-se em conta os argumentos apresentados, a ficção brasileira, através dos mais representativos autores, vem transformando em problema literário 11– no sentido positivo do termo – a estrutura de suas obras quando vistas em íntima relação com o chão histórico. E nesse aspecto, a crítica de Antonio Candido torna-se um bom exemplo desse contexto materializado em forma.

NOTAS:

[1] Alguns exemplos de ufanismo, temas do índice. Primeiro motivo de superioridade do Brasil: a sua grandeza territorial; V. Segundo motivo de superioridade: a sua beleza; VI. Terceiro motivo: o Amazonas; VII. A Cachoeira de Paulo Afonso; IX. A Baía do Rio de Janeiro; XII. Quarto motivo: a sua riqueza natural; e uma última amostragem: Sétimo motivo de superioridade do Brasil: nobres predicados do caráter nacional. In: Porque me ufano do meu país. Versão para Book e BooksBrasil. Fonte digital: Digitalização de edição em papel Laemert $ C. Livreiros – Editores, 1908.
[2] Idem: XXXIX: A escravidão no Brasil XXII. predicados do caráter nacional.
[3] ROMERO , Sílvio. História da Literatura brasileira. 7 ed., Rio de Janeiro: José Olympio/INL/MEC, 1980, 5 vol, p. 1506.
[4] ARARIPE JÚNIOR. Estilo tropical e Gregório de Matos. In: Araripe Jjúnior: teoria, crítica e história literária. Seleção e apresentação de Alfredo Bosi. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1978. Sobre a obnubilação brasílica, o crítico diz: “Na Introdução da Literatura brasileira declarei que na crítica dos materiais da história nacional tinha-me deixado impressionar profundamente pelos que se referem à lei assim pitorescamente denominada. Essa lei constitui o eixo dos meus trabalhos sobre o Brasil.” (op. cit, p. 310 ) .
[5] Ver a propósito da antropofagia oswaldiana e do movimento tropicalista o texto de Roberto Schwarz: O bonde, a carroça e o poeta modernista e Nacional por subtração. In: Que horas são?. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
[6] CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: Educação pela noite. São Paulo: Ática, 1987, p157.
[7] CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In: Literatura e sociedade. 5 ed.. São Paulo: Editora Nacional, 1976, p. 110.
[8] SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: Que horas são?, Op. cit. p. 32.
[9] CANDIDO, Antonio. Critica e sociologia. Literatura e sociedade. Op. cit., p. 04.
[10] SCHWARZ Roberto. Originalidade da crítica de Antonio Candido. São Paulo: Novos estudos CEBRAP, no 32. mar/1992, p. 40. Republicado em Seqüências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[11] SCHWARZ, Roberto: um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990, p. 11. Sobre o emprego deste “problema literário”, Schwarz explica: “Ao transpor para o estilo as relações sociais que observa, ou seja, ao interiorizar o país e o tempo, Machado compunha uma expressão da sociedade real, sociedade horrendamente dividida, em situação muito particular, em parte inconfessável. Nos antípodas da pátria romântica. O ‘homem do seu tempo e de seu país’ deixava de ser um ideal e fazia figura de problema.”

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