segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A Lírica, a Modernização e a Modernidade

O impasse criado para a lírica, após a palavra de ordem dos românticos que se insurgiram contra a norma clássica, veio conferir-lhe estatutos polêmicos e polarizações que se agravaram a partir do século XIX. Impasse que atingiu seu ápice com a consolidação da sociedade burguesa, criadora e criatura de uma nova ordem de valores. Aprofundados pelo avanço do capital e da técnica, eles engendram novos meios de produção e, portanto, novas relações sociais mais dinâmicas e contraditórias.
Fenômenos como a multidão, o anonimato e a máquina, gerando a procissão da pressa e da automação, causaram o primeiro impacto nos poetas do século XIX. Baudelaire foi o primeiro a receber os “chocs” dessa mudança e transformá-los em produto lírico nos Tableaux parisiens. A consciência da crise requeria também uma mudança total da lírica que fosse, ao mesmo tempo e contraditoriamente, aceitação e recusa à nova ordem outorgada. Walter Benjamin, ao analisar o contexto das últimas décadas do século XIX e início do século XX, define a posição desses intelectuais como “uma desilusão radical com o século e ao mesmo tempo uma total fidelidade a esse século.”
A lírica anterior à estética romântica tinha como uma das características a consonância entre o mundo e o sujeito lírico, num contexto ainda não sujeito a grandes transformações. O poeta lírico era, por assim dizer, o menestrel de seu tempo. Poeta e leitor comungavam juntos de um mundo razoavelmente ordenado e orientado pela filosofia iluminista, sem os ajustes e/ou desajustes que a técnica moderna iria lhes impor. O prenúncio dos estertores dessa lírica já aparece no romance de Balzac, onde o autor de A comédia humana, fez do protagonista Luciano, de As ilusões perdidas o lírico dissonante entre a decadência aristocrática e a ascendência burguesa. O romantismo emite os primeiros sinais desse desconforto, que é caracterizado como um duplo movimento da revolta e do ”sol negro da melancolia”, segunda a definição do poeta Gérard Nerval. Ao analisar os fundamentos dessa revolta, assim dizem os autores de Revolta e melancolia:
"Acontece que, para os românticos, o verdadeiro núcleo do valor continua sendo a união com os homens e o universo natural.
Ora, convém observar que essa dupla exigência se define precisamente em oposição ao status quo instaurado pelo capitalismo. O princípio capitalista de exploração da Natureza está em contradição com a aspiração romântica em viver de forma harmoniosa em seu âmago. E o desejo de recriar a comunidade humana - encarada sob múltiplas formas: pela comunicação autêntica com outrem; pela participação no conjunto orgânico de um de um povo e no seu imaginário coletivo manifestado através de mitologias e folclores; pela harmonia social ou uma sociedade sem classes - é a contrapartida da recusa da fragmentação da coletividade na modernidade. Portanto, a crítica desta e os valores positivos constituem apenas os dois lados de uma só moeda."


Mas já no século XVIII os poetas ingleses prenunciam em seus poemas a intrusão industrial na natureza. A implantação da indústria na Inglaterra modifica a paisagem inglesa e motiva o aproveitamento do dejeto industrial como se pode ver nestes versos de Wordsworth:

“...the smoke of unremitting fires
Hangs permanent, and plentiful as wreaths
Of vapor glittering is the morning sun.”


Em Baudelaire, essa melancolia escapa destes versos de Chant d’automne:


"Bientôt nos plongerons dans les froids tenèbres;
Adieu, vive clarté de nos étes trop cours!
J’entends dejá tomber avec de chocs funèbres
Le bois retentissant sur le pavé des cours."

Ou ainda na melancolia sutilmente irônica destes versos do poema Paysage:
"Il est doux, à travers les brummes, de voir naitre/
L’étoile dans l’azur, la lampe à la fenêtre.
Les fleuves de charbon monter au firmament
Et la lune verser son pâle enchantement. "


Com o descompasso criado entre a emergência e a urgência da modernização, o poeta lírico voltou o olhar sobre si mesmo e se viu à margem de uma sociedade voltada agora, e mais do que nunca, para o utilitarismo. A poesia, como bem simbólico, não poderia nem deveria competir nesse mercado. Como e onde vai se enquadrar a lírica? Que espaço se lhe sobraria?
A resposta virá através da resistência, em que ela “abrirá caminho caminhando”. Sobre a resistência da poesia moderna, Alfredo Bosi diz que:

"A modernidade se dá como recusa e ilhamento. [...] A resistência tem muitas faces. Ora propõe a recuperação do sentido comunitário perdido (poesia mítica, poesia da natureza); ora a melodia dos afetos em plena defensiva (lirismo de confissão, que data, pelo menos, da prosa ardente de Rousseau) ; ora a crítica direta ou velada da desordem estabelecida (vertente da sátira, da paródia,, do epos revolucionário, da utopia). [...] Nostalgia, crítica ou utópica, a poesia moderna abriu caminho caminhando."


A nova poesia tem como características a crise do verso, a dissonância formal, a despersonalização, entre outras. Diz Hugo Friedrich:

"Com Baudelaire começa a despersonalização da lírica moderna, pelo menos no sentido que a palavra lírica já não nasce da unidade da poesia e da pessoa empírica, como haviam pretendido os românticos, em contrate com a lírica de muitos séculos anteriores. [...] Os poetas sempre souberam que a aflição se dissolve no canto. É o conhecimento da catarse do sofrimento mediante sua transformação em linguagem formal mais elevada. Mas apenas no século XIX, quando o sofrimento com finalidade passou a sofrimento sem finalidade, à desolação e, por fim, ao niilismo, as formas tornaram-se tão imperiosamente, a salvação - conquanto fechadas em si e repousantes - entrando em dissonância fundamental na poesia moderna."

A despersonalização da poesia moderna se manifesta com o poeta criando o distanciamento da lírica mais ao lado da inspiração ou da intensa subjetividade, que era uma das características do poeta romântico: o Eu-lírico era intensamente projetado. Vale a pena conferir o sentido desta despersonalização nas palavras de Hugo Friedrich:

"Fora da França, Poe foi quem separou, de modo mais resoluto, um do outro lírica e o coração. desejou como sujeito da lírica uma excitação entusiástica mas que esta nada tivesse a ver com paixão pessoal nem com the intexication of the heart ( a embriaguez do coração). Entende, por excitação entusiástica, uma disposição ampla, chama-a de alma, em verdade só para dar-lhe um nome, porém acrescenta cada vez: ‘não coração’. Baudelaire repete as palavras de Poe quase ao pé da letra, variando-as com formulações próprias: ‘A capacidade de sentir do coração não convém ao trabalho poético’, em oposição à ‘capacidade de sentir da fantasia’. Há de se considerar que Baudelaire concebe a fantasia como uma elaboração guiada pelo intelecto... Esta concepção lança luz necessária sobre as palvras citadas há pouco. Estas exigem que se prescinda de todo o sentimentalismo pessoal a favor de uma fantasia clarividente ... [...] Em uma carta, ele fala da ‘intencionada impessoalidade de minhas poesias’, com o que se entende que elas podem podem expressar qualquer possível estado de consciência do homem, com preferência os mais extremos. ‘Lágrimas? Sim, mas aquelas que não vêm do coração’. Baudelaire justifica a poesia em sua capacidade de neutralizar o coração pessoal. Isto acontece de maneira ainda tateante, muitas vezes encoberto debaixo de concepções mais antigas, Mas ocorre de tal modo que se pode conhecer o futuro passo da neutralização da pessoa para a desumanização do sujeito lírico como uma necessidade histórica. De qual quer forma, contém aquela despersonalização que, mais tarde, será explicada por T. S. Eliot e outros como pressuposto para a exatidão e a validade do poetar.
Quase todas as poesia de Les Fleurs du mal falam a partir do eu, Baudelaire é um homem curvado sobre si mesmo. Todavia este homem voltado para si mesmo, quando compões poesias, mal olha para seu eu empírico. Ele fala em seus versos de si mesmo, na medida em que se sabe vítima da modernidade. Esta pesa sobre ele como uma excomunhão. Baudelaire disse com bastante freqüência, que seu sofrimento não era apenas seu. [...] Ele nunca teria feito versos como, por exemplo, os de Victor Hugo sobre a morte de uma criança. Com uma solidez metódica e tenaz mede em si mesmo todas as fases que surgem sobre a coação da modernidade: a angústia, a impossibilidade de evasão, o ruir frente à idealidade ardentemente querida, mas que se recolhe ao vazio. Estes são os sintomas da civilização moderna, como acentua Baudelaire, perigos dos quais ele próprio tem de precaver-se."


Dessa maneira, é que vemos chegar o fim do século XX, com a lírica posta em meio dos mesmos impasses, das mesmas polêmicas e polarizações. Ao contrário da épica que foi absorvida pelo romance e, portanto, bem contextualizada pela relação (im)pessoal, a lírica padece do mal incurável de ser Eu sendo Nós, ou seja: um Eu que forçosamente expressa a voz da comunidade. Octavio Paz, poeta e crítico literário, nascido no México, diz a respeito da criação do poema:

"As palavras do poeta são também as palavras de sua comunidade. Do contrário não seriam palavras. Toda palavra implica dois elementos: o que fala e o que ouve. O universo verbal do poema não é feito dos vocábulos do dicionário, mas dos vocábulos da comunidade. O poeta não é um homem rico em palavras mortas, mas em vozes vivas."


E Paul Valéry, o grande poeta francês, que sucedeu a Baudelaire, assim se expressa a respeito da criação lírica:

"Considerem também que, entre todas as artes, a nossa é talvez a que coordena o máximo de partes ou de fatores independentes: o som, o sentido, o real e o imaginário, a lógica e a sintaxe e a dupla invenção do conteúdo e da forma... e tudo isso por intermédio desse meio essencialmente prático, perpetuamente alterado, profanado, desempenhando todos os ofícios, a linguagem comum, da qual devemos tirar uma voz pura, ideal, capaz de comunicar sem fraquezas, sem aparente esforço, sem atentado ao ouvido e sem romper a esfera instantânea do universo poético, uma idéia de algum eu maravilhosamente superior a Mim."


2. E AGORA JOSÉ?


As considerações acima, trazidas para a Modernidade brasileira, podem ser percebidas nos poemas dos nossos melhores poetas modernistas, entre eles o mineiro Carlos Drummond de Andrade. Estreando em 1930 com o livro Alguma poesia (embora já viesse publicando em jornais de Minas Gerais, contemporaneamente aos modernistas de São Paulo), Drummond já pertence a uma tradição consolidada em termos de poesia moderna no país. Seus poemas abrigam algumas das características apontadas por Hugo Friedrich na lírica contemporânea: despersonalização do sujeito lírico, dissonância na forma, idealidade vazia (fim da utopia), desenraízamento do homem (a solidão moderna), fragmentação das relações humanas, entre outras. O poema José, que dá nome ao seu quarto livro publicado, pode servir de exemplo dessas características, através das escolhas formais do poeta.

JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você moresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua,
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?


A despersonalização que se evidencia pelo “distanciamento” do sujeito lírico, cuja voz já não se alimenta de puras emoções individuais, presentifica-se neste poema pela presumível interlocução entre o Eu-lírico e um interlocutor anônimo. Na verdade, a interlocução é “forjada” pela construção do poema que se apoia, do começo ao fim, numa interrogação. Ao transferir para o “José” suas próprias inquietações, o sujeito lírico consegue esse “distanciamento” que é uma das características da poesia moderna. Torna, assim, o discurso lírico mais tenso e despersonalizado, ao mesmo tempo em que envolve o leitor na cumplicidade de suas angústias. No primeiro poema de Fleurs du mal, Baudelaire, referindo-se ao tédio (spleen) que assola a vida moderna, enuncia nesta estrofe final do poema Au lecteur o fundamento dessa cumplicidade:

"C’est l’Énnui! - l’oeil chargé d’un pleur involontaire,
Il rêve d’échafauds en fumant Son houka
Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat,
- Hypocrite lecteur, - mon semblable, - mon frère!"
(grifos meus)

"É o Tédio - o olhar esquivo à mínima emoção,
Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.
Tu conheces, leitor, o monstro delicado
- Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!"

(Tradução de Ivan Junqueira)



No poema de Drummond, o tédio, o desapontamento, e o fim da utopia vão sendo paulatinamente construídos. O tempo presente, que é configurado na enunciação através do advérbio agora e de alguns verbos no presente (“você que faz versos,/ que ama, protesta/ Está sem mulher,/está sem discurso, está sem carinho,”), tem como conseqüência um passado finito que o poeta representa através dos verbos no pretério perfeito do indicativo: “A festa acabou,/a luz apagou,/o povo sumiu,/ a noite esfriou,”. Diz respeito a uma situação metafórica que enfeixa o drama existencial da modernidade, cujas relações impessoais se concretizam no verso: “você que é sem nome,”.
À medida em que o poema evolui e que se esgotam as alternativas existênciais enumeradas pelo poeta, a penultima estrofe é construída sob o recurso de uma condicionalidade improvável, apontando para o impasse e o desfecho, com os verbos empregados no mais que perfeito do subjuntivo : “Se você gritasse,/se você gemesse,/ se você tocasse a valsa vienense,”... Dessa maneira, presente/ passado agônicos e um futuro improvável e precário são os suportes formais, entre outros, que evidenciam as indagações do sujeito lírico.
Outro recurso formal de que se serve o poeta é o uso da anáfora em todas as estrofes. Tal recurso ajuda a manter o ritmo da redondilha menor (o pentassílabo) ao mesmo tempo em que dá ênfase às situações criadas no poema. Da mesma forma, o discurso poético usa e abusa do coloquial, beirando a referencialidade, (“já não pode beber,/ já não pode fumar,/ cuspir já não pode,”) não fosse pela ambigüidade de que se vale o poeta no uso das metáforas, ou seja, de uma linguagem que transpõe o real em busca de outras significações. É o caso dos versos: “Com a chave na mão/ quer abrir a porta,/não existe porta;/ quer morrer no mar,/ mas o mar secou; /que ir para Minas,/Minas não existe mais.”
A linguagem figurada destes versos instaura a disssonância, ou a incongruência do sentido da mensagem que normalmente norteia a linguagem comunicativa ou referencial. Sabemos, enquanto leitores, que o mar não seca e que Minas continua no mesmo lugar, mas a força poética da imagem torna o leitor cúmplice da situação conflitiva que permeia o poema, revelando-se como o drama existencial da vida moderna. Sozinho no escuro, José marcha, para onde?

Um comentário:

Marília disse...

Adorei!! Drummond e Baudelaire sempre são maravilhosos e ainda mais como objetos de estudo/reflexão da loucura a que deram o nome de modernidade e sua liquidez já (re)conhecida.

Beijos